quinta-feira, 21 de novembro de 2013

SONHO OU PESADELO?
(CRÔNICA INTIMISTA)


Era 75 e eu batia numa porta errada. Por encanto ela se abriu. Fechou-se rapidamente num abraço como garras de polvo. No recinto havia muitas portas. Um labirinto. Entregaram-me um chaveiro de ouro ou de prata. Não me lembro. Parecia uma medalha. Descobri uma chave brilhante. Um pingente assim como um brinco de diamante legítimo, raro, geometricamente fascinante. Faiscava em todos os ângulos. Senti-me uma rainha, mas estava presa. Entrei em pânico. Precisava fugir. Armei um plano. Usar a chave. Ouvi muitos cânticos, muitos anjos. Não gostei do céu, era escuro, artificial. Um planetário sufocante. Algumas estrelas piscavam-me divertidas, hilariantes. A lua minguante. Não havia tempo, nem sol nem dia, só noite. Tudo sufocante como esta rima. Davam-me pílulas que diziam ser vitaminas. Eu dormia com ânsias. Acordava com náuseas. Não me lembro também o que fazia nos intervalos. Acho que escrevia bobagens obscuras, trêmulas, carregadas de fumaça, nevoeiro. Estaria num barco? Numa barca do dilúvio? Seria o fim do mundo? Reagi e, tateando, experimentei a arma disponível. Não era proibido. E comecei a via crucis ou sacra de porta em porta. A chave não entrava. Seria falsa? Após anos de luta infrutífera, resolvi bater desesperadamente numa das portas. Alguém balbuciou alguma coisa do outro lado, deu-me esperanças de saída, não de fuga. Tinha que cumprir a pena. Usar a cabeça sem fantasias. Só assim aquela chave me levaria à liberdade para o sol. Eu clamava justiça, falava muito, me defendia, brigava. Que crime tinha cometido afinal? A voz não sabia, insinuava alguns índices, poucos fatos. Muito mistério. Eu deveria saber dos meus pecados e me penitenciar, me retratar, me confessar?! Fiz um retrospecto. Tinha sido condenada com uma severidade radical e sumária. Um não irreversível. Havia entrevistas em rituais. Os jurados eram imparciais, mas respeitavam a individualidade. Sem códigos gravados na testa, na cabeça. Para remover o estigma, só a guilhotina, como um câncer de língua em estado grave. Sem máximas do tipo: assuma o seu não, caso contrário perderá a cabeça. Um sim falso como um não vestido de sim sem carnaval. Comecei a tentar, a confiar. Aquela voz era calma, cativante, sábia. De repente uma fenda, um espelho bem no meio da porta, espesso. Dois olhos inquisidores e protegidos já por um vidro diamante, à prova de gritos, lágrimas, balas (era um ser humano?!!) apareceram. Diamante? A chave, a chave combina. Tentei desesperadamente uma esperança de abertura. Ajude-me, eu preciso de um sim indeciso, tímido, de um sim intermediário para negociar com o não terrível. Prometo depois enfrentar os jurados, reivindicá-lo sozinha. Já me sinto viva. Os olhos se fecharam, nem me deixaram usar a chave. Passei a mão na superfície do espelho, da claraboia, estava fria, glacial. A porta era de mármore. Não vi mais nada. Bati novamente. Só me restava aquela porta. Estaria cega? Clamei pela voz. – Um atestado? Um salvo-conduto? Um habeas corpus? Liberdade condicional? Um passaporte? Boas referências? Absolvição?
- Não, não, eu pensei...depois desta pena ganhar créditos para um parecer favorável junto àqueles jurados, quem sabe... – Bateu em porta errada, a senhora está louca!? Sou apenas um mago e como mago não posso lhe absolver de nada. Prefiro o silêncio aberto a recriações infinitas... só assim chego perto.
Eu parecia agora compreender. Mago é aquele que faz previsões, mas não interfere nas reações humanas, não se arrisca a diagnósticos. Deve ser o único profissional fiel à ética da classe sem sacrifício, sem debate de consciência, mas a empresa não deve ser fácil. Magia é a especialidade da alma, sobrevive de mistérios.
O dia em que a magia cultivar certezas estará falida. Não possui respostas absolutas nem de sim nem de não, sobrevive eternamente de buscas incansáveis e sofridas. Está sempre na fase dos experimentos, o que exige cobaias sobrenaturais. Um mago não vive de conceitos baseados em referências. Seus súditos são artistas que ampliam a mente em várias dimensões e atingem todas as galáxias. Chegará o dia em que a magia e todos os seus paramentos se defrontarão com a ciência e dela farão parte numa assimilação interativa e mágica, porém válida. Não haverá dicotomias entre magia e ciência e, sim, mais uma luz nas trevas do insondável para o mesmo fim.
Talvez tudo isso seja apenas uma das minhas utopias em fase de crise, efeito do pesadelo ou sonho, mas no momento é minha verdade. O slogan de quem faz por a gente é a gente mesma foi na verdade o que sempre ouvi neste mundo desde que nasci. Para este conselho não se precisa de mago quando se trata apenas de sobrevivência material. Entender o que nos escapa à compreensão objetiva dos fatos sociais e rotineiros é o grande desafio do ser humano, porque este é dotado não só de inteligência racional, mas de magia criativa, muito mais emocional. Com a ganância e a solidão, a dependência ligada aos bens materiais, torna-se o valor principal da vida e cega, abafa o que há de mais rico e livre: caminho aberto para a depressão. Logo, a proposta de valorizar o que temos de mais sutil e íntimo, buscando-lhe um conceito centrado na compreensão das almas será mais válida, já que até agora o mundo material com suas riquezas, seus poderes, seus valores, despreza o afetivo. Resolve ou pode continuar a resolver a sobrevivência física, mas não o relacionamento do conviver e o extermínio relativo do mal. Cabeça e mãos parecidas, pernas para caminhada, vozes para o diálogo, palavras na prática, na ação e até no silêncio compartilhado deveriam ser o lema com profundidade mística entre as gerações. Para atingir este grau de desprendimento e abstracionismo é necessário valorizar o invisível, não só na ciência explícita que às vezes o torna ingenuamente concreto e só visto a olhos nus, mas também na busca de explicações do que realmente é abstrato que abrange os sentimentos e as dores. O sentir tão esquecido deve mais do que nunca vir à tona. A cura, por exemplo, relativa à tristeza, ao sofrimento, às drogas, à solidão compartilhada que derrubam famílias, atingem as sociedades, as nações, está muito mais ligada ao afeto. O mundo da saúde com todos os seus recursos, seria mais eficaz se tentasse curar compreendendo e sentindo. A espécie humana se fortaleceria encorajando-se a sobreviver, a progredir e a ser feliz apesar da morte. É necessário usufruir melhor o período de sobrevivência aqui no planeta não só na supervalorização da saúde física, mas também no cultivo da espiritualidade com todos os seus meandros místicos e fugidios. Não há necessidade de uma máxima comprovada para aceitar como verdadeira a espiritualidade. Não precisamos de verdades imutáveis e sim de consenso no que se refere ao alívio das dores ligadas às emoções e por que não à alma e ou ao espírito?
O caminho parece-me ser o equilíbrio relativo com a fuga aos extremos. Devemos evitar absolutismos fanáticos de qualquer natureza, sejam no âmbito da teologia, da ciência ou no campo de ideologias em constantes antagonismos dialéticos. O sim significa junto com o não a vida em equilíbrio, me parece que um, não deva ultrapassar em muito o outro. A equidade, é claro, não podemos nunca esquecer de respeitar. A personalidade de cada homem deve ser usada para as trocas de enriquecimento numa interação harmoniosa e nunca ignorada por interesses corporativistas. As grandes descobertas partem do individual no que o homem tem de mais sensível e intuitivo. Terá papel preponderante na realização deste idealismo, a justiça social. Creio que consegui sair do pesadelo e entrar no sonho pela teoria do senso comum. Com isto ainda estamos muito longe da prática, mas temos que continuar na missão difícil de partir do pesadelo, atingir o sonho e chegar com mais consciência e facilidade à prática de uma realidade espiritual dentro da nossa rotina diária em sociedade. Deve-se entender o espiritual como um coletivo que contém em si as emoções afetivas, acompanhando de perto a prática de todas as nossas ações objetivas. Perceberam como consegui entrar com sugestões poéticas confusas, desordenadas através dos meus estilemas musicais e vencer a entropia para chegar ao poema da razão? Comecei este texto sem intenção objetiva de querer nada e sim criar alguma coisa, desabafar sem receitas através das emoções. Aos poucos o espírito foi se disciplinando para descobrir algo do caos por mais simples, opaco e comum que fosse. Não achei um diamante, a cura da aids ou do câncer: uma simples pedrinha brasileira brilha no planeta.

Marlene Vieira Perez - MPerez - Em SP, 23/06/82.
Designer DougB



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