SONHO OU PESADELO?
(CRÔNICA INTIMISTA)
(CRÔNICA INTIMISTA)
Era 75 e eu batia numa porta errada. Por encanto ela se abriu. Fechou-se
rapidamente num abraço como garras de polvo. No recinto havia muitas portas. Um
labirinto. Entregaram-me um chaveiro de ouro ou de prata. Não me lembro.
Parecia uma medalha. Descobri uma chave brilhante. Um pingente assim como um
brinco de diamante legítimo, raro, geometricamente fascinante. Faiscava em
todos os ângulos. Senti-me uma rainha, mas estava presa. Entrei em pânico. Precisava
fugir. Armei um plano. Usar a chave. Ouvi muitos cânticos, muitos anjos. Não
gostei do céu, era escuro, artificial. Um planetário sufocante. Algumas
estrelas piscavam-me divertidas, hilariantes. A lua minguante. Não havia tempo,
nem sol nem dia, só noite. Tudo sufocante como esta rima. Davam-me pílulas que
diziam ser vitaminas. Eu dormia com ânsias. Acordava com náuseas. Não me lembro
também o que fazia nos intervalos. Acho que escrevia bobagens obscuras, trêmulas,
carregadas de fumaça, nevoeiro. Estaria num barco? Numa barca do dilúvio? Seria
o fim do mundo? Reagi e, tateando, experimentei a arma disponível. Não era
proibido. E comecei a via crucis ou sacra de porta em porta. A chave não
entrava. Seria falsa? Após anos de luta infrutífera, resolvi bater
desesperadamente numa das portas. Alguém balbuciou alguma coisa do outro lado,
deu-me esperanças de saída, não de fuga. Tinha que cumprir a pena. Usar a
cabeça sem fantasias. Só assim aquela chave me levaria à liberdade para o sol.
Eu clamava justiça, falava muito, me defendia, brigava. Que crime tinha
cometido afinal? A voz não sabia, insinuava alguns índices, poucos fatos. Muito
mistério. Eu deveria saber dos meus pecados e me penitenciar, me retratar, me
confessar?! Fiz um retrospecto. Tinha sido condenada com uma severidade radical
e sumária. Um não irreversível. Havia entrevistas em rituais. Os jurados
eram imparciais, mas respeitavam a individualidade. Sem códigos gravados na
testa, na cabeça. Para remover o estigma, só a guilhotina, como um câncer de
língua em estado grave. Sem máximas do tipo: assuma o seu não, caso contrário
perderá a cabeça. Um sim falso como um não vestido de sim sem carnaval. Comecei
a tentar, a confiar. Aquela voz era calma, cativante, sábia. De repente uma
fenda, um espelho bem no meio da porta, espesso. Dois olhos inquisidores e
protegidos já por um vidro diamante, à prova de gritos, lágrimas, balas (era um
ser humano?!!) apareceram. Diamante? A chave, a chave combina. Tentei desesperadamente
uma esperança de abertura. Ajude-me, eu preciso de um sim indeciso,
tímido, de um sim intermediário para negociar com o não terrível.
Prometo depois enfrentar os jurados, reivindicá-lo sozinha. Já me sinto viva.
Os olhos se fecharam, nem me deixaram usar a chave. Passei a mão na superfície
do espelho, da claraboia, estava fria, glacial. A porta era de mármore. Não vi
mais nada. Bati novamente. Só me restava aquela porta. Estaria cega? Clamei
pela voz. – Um atestado? Um salvo-conduto? Um habeas corpus? Liberdade
condicional? Um passaporte? Boas referências? Absolvição?
- Não, não, eu pensei...depois desta pena ganhar créditos para um
parecer favorável junto àqueles jurados, quem sabe... – Bateu em porta errada,
a senhora está louca!? Sou apenas um mago e como mago não posso lhe absolver de
nada. Prefiro o silêncio aberto a recriações infinitas... só assim chego perto.
Eu parecia agora compreender. Mago é aquele que faz previsões, mas não
interfere nas reações humanas, não se arrisca a diagnósticos. Deve ser o único
profissional fiel à ética da classe sem sacrifício, sem debate de consciência,
mas a empresa não deve ser fácil. Magia é a especialidade da alma, sobrevive de
mistérios.
O dia em que a magia cultivar certezas estará falida. Não possui respostas
absolutas nem de sim nem de não, sobrevive eternamente de buscas
incansáveis e sofridas. Está sempre na fase dos experimentos, o que exige
cobaias sobrenaturais. Um mago não vive de conceitos baseados em referências. Seus
súditos são artistas que ampliam a mente em várias dimensões e atingem todas as
galáxias. Chegará o dia em que a magia e todos os seus paramentos se
defrontarão com a ciência e dela farão parte numa assimilação interativa e
mágica, porém válida. Não haverá dicotomias entre magia e ciência e, sim, mais
uma luz nas trevas do insondável para o mesmo fim.
Talvez tudo isso seja apenas uma das minhas utopias em fase de crise,
efeito do pesadelo ou sonho, mas no momento é minha verdade. O slogan de quem
faz por a gente é a gente mesma foi na verdade o que sempre ouvi neste mundo
desde que nasci. Para este conselho não se precisa de mago quando se trata
apenas de sobrevivência material. Entender o que nos escapa à compreensão
objetiva dos fatos sociais e rotineiros é o grande desafio do ser humano,
porque este é dotado não só de inteligência racional, mas de magia criativa,
muito mais emocional. Com a ganância e a solidão, a dependência ligada aos bens
materiais, torna-se o valor principal da vida e cega, abafa o que há de mais
rico e livre: caminho aberto para a depressão. Logo, a proposta de valorizar o que
temos de mais sutil e íntimo, buscando-lhe um conceito centrado na compreensão
das almas será mais válida, já que até agora o mundo material com suas
riquezas, seus poderes, seus valores, despreza o afetivo. Resolve ou pode
continuar a resolver a sobrevivência física, mas não o relacionamento do
conviver e o extermínio relativo do mal. Cabeça e mãos parecidas, pernas para
caminhada, vozes para o diálogo, palavras na prática, na ação e até no silêncio
compartilhado deveriam ser o lema com profundidade mística entre as gerações.
Para atingir este grau de desprendimento e abstracionismo é necessário
valorizar o invisível, não só na ciência explícita que às vezes o torna
ingenuamente concreto e só visto a olhos nus, mas também na busca de
explicações do que realmente é abstrato que abrange os sentimentos e as dores.
O sentir tão esquecido deve mais do que nunca vir à tona. A cura, por
exemplo, relativa à tristeza, ao sofrimento, às drogas, à solidão compartilhada
que derrubam famílias, atingem as sociedades, as nações, está muito mais ligada
ao afeto. O mundo da saúde com todos os seus recursos, seria mais eficaz se
tentasse curar compreendendo e sentindo. A espécie humana se fortaleceria
encorajando-se a sobreviver, a progredir e a ser feliz apesar da morte. É
necessário usufruir melhor o período de sobrevivência aqui no planeta não só na
supervalorização da saúde física, mas também no cultivo da espiritualidade com
todos os seus meandros místicos e fugidios. Não há necessidade de uma máxima
comprovada para aceitar como verdadeira a espiritualidade. Não precisamos de
verdades imutáveis e sim de consenso no que se refere ao alívio das dores
ligadas às emoções e por que não à alma e ou ao espírito?
O caminho parece-me ser o equilíbrio relativo com a fuga aos extremos.
Devemos evitar absolutismos fanáticos de qualquer natureza, sejam no âmbito da
teologia, da ciência ou no campo de ideologias em constantes antagonismos
dialéticos. O sim significa junto com o não a vida em equilíbrio,
me parece que um, não deva ultrapassar em muito o outro. A equidade, é claro, não
podemos nunca esquecer de respeitar. A personalidade de cada homem deve ser
usada para as trocas de enriquecimento numa interação harmoniosa e nunca
ignorada por interesses corporativistas. As grandes descobertas partem do
individual no que o homem tem de mais sensível e intuitivo. Terá papel
preponderante na realização deste idealismo, a justiça social. Creio que
consegui sair do pesadelo e entrar no sonho pela teoria do senso comum. Com
isto ainda estamos muito longe da prática, mas temos que continuar na missão
difícil de partir do pesadelo, atingir o sonho e chegar com mais consciência e
facilidade à prática de uma realidade espiritual dentro da nossa rotina diária em sociedade. Deve-se
entender o espiritual como um coletivo que contém em si as emoções afetivas,
acompanhando de perto a prática de todas as nossas ações objetivas. Perceberam
como consegui entrar com sugestões poéticas confusas, desordenadas através dos
meus estilemas musicais e vencer a entropia para chegar ao poema da razão?
Comecei este texto sem intenção objetiva de querer nada e sim criar alguma
coisa, desabafar sem receitas através das emoções. Aos poucos o espírito foi se
disciplinando para descobrir algo do caos por mais simples, opaco e comum que
fosse. Não achei um diamante, a cura da aids ou do câncer: uma simples pedrinha
brasileira brilha no planeta.
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