I
Nasci a 9 de Outubro de 1935, às 14:00
horas, na ilha de Florianópolis – SC. Tenho o Sol em Libra, com ascendente em
Aquário, lua em Peixes e até que faz sentido.
Segundo detalhes macabros de minha mãe, meu parto
foi muito difícil, meio a brasa e ferro, daí ter eu sido registrada
oficialmente só a 20 de Outubro, sem o Souto materno. Uma pena! Acho um luxo
Souto Vieira, mesmo sem ser o castiço do Vieira Souto, sei lá. Logo cedo me
senti rejeitada? Não sei e nem quero saber.
Meu nome Marlene,foi em louvor à
parteira Maria Madalena, também nunca entendi bem esta homenagem assim mutilada
em aglutinação canhestra.
Cantar,representar, ler e escrever
sempre foram minha fuga para o jardim preferido.
Tinha como irmã uma deusa grega
surpreendente até no nome Zoê.
Quase todos os dias apanhava uma surra
da minha mãe, com vara de macieira ou marmelo que eu era obrigada a escolher no
pomar, a mais grossa de preferência. O castigo maior latejava na dor da
humilhação. Como era proibido chorar; sempre vinha um segundo tempo para calar
os lamentos. Naquele tempo não havia a Associação de amparo ao menor.
Nunca sabia por que apanhava, afinal
era cozinheira, limpava os lixos do teatro cotidiano, bordava e fazia labirinto
em todos os ângulos, curvada nos bastidores. Creio ser o motivo de nunca ter a
vida me reprovado nos seus bancos de escola.
Meu primeiro emprego foi após o
segundo grau, auxiliar de secretária no extinto Instituto Brasileiro do Café.
Pode? Na seqüência veio Farmácia, Direito e casamento, uma graça! Logicamente a santíssima trindade tinha que
ser mutilada. O direito foi condenado e saiu do páreo. Medicina muito distante
competia nas vizinhanças de Curitiba. A atmosfera na minha casa aos vinte anos
tornou-se sufocante e reacionária. Fuga: casei com um senhor pobre sem engenho
de açúcar. Além de idoso e feio como comentavam no seio da família, era vinte e
cinco anos mais velho do que eu. Os filhos que me desculpem, mas se são belos
puxaram à mãe, ainda bem. Ao todo três: Taipas, Coiper e Brero. Calma gente são
só apelidos de crianças, na verdade têm nomes até grandiloqüentes e
aristocráticos: André Luiz, Carlos Alberto e Augusto Cezar. Devido à pressão óbvia, desisti de advocacia,
terminei farmácia e fui ser professora, me enveredando para o campo das letras
e das ciências naturais.
Mais tarde vim para São Paulo. Marido
aposentado, trabalhando em imobiliária.
Lá pelas tantas me vi formada pela USP
em Línguas, com licenciatura, bacharelado e tudo. Nem acredito. Eureka ! Eu não
sou burra, até hoje é o meu extra-brilho. Concursos públicos para o Estado,
Prefeitura, perdi a conta. Sucesso total. Meu pai sempre dizia: “Meninas, vou
educa-las porque são fracas, devem se defender com a cabeça e com a palavra
meninas! É o que nos salva. Sejam sempre muito honestas mas muito críticas. Eu posso dar murro no pesado,
vocês não. Eu juro!“.
Dizem que admiração traz inveja,
inveja traz ódio, diabo a quatro e o pior é que tudo faz sentido. Até pode ser
mas sempre fui muito feliz !?. Ah! lembrei, também fiz Pedagogia com habilitação
em Supervisão, Administração e todos esses cursos de espera marido, mas
infelizmente, pasmem! já era casada e consciente da minha situação inexorável
de prisioneira.
Antes de me casar... Imaginem? Isso
ai, adivinharam. Uma ameaça de cantora de rádio e atriz de novela em cena
naquela ilha perdida toda mágica. É isso mesmo, a nossa Florianópolis, da
“Princesinha da Ilha” etc e tal. Adivinhem? Na rádio Guarujá ahahah, com
quatorze anos fui mãe de um ceguinho, Dona Maria. Não lembro mais do nome da
novela. Só lembro de que o contra-regras era o Mozart Régis, isso mesmo, o
Pituca, produtor do Jô Soares, aquele do “Viva o Gordo” ! Meu pai entrou em
cena e fechou o tempo.
Com o salário do magistério público
eduquei a macharia, entrava pela madrugada a dentro. O Nelson Gonçalves da
boemia era fichinha. Todos os meus filhos têm curso superior, com PhD ou sem
PhD são todos doutores, e como são. Sim, Senhores! Soltei os “currículos vivos”
no mundo, voltei a Florianópolis, comprei “O sítio do Silêncio”; que hoje se
chama “Morada da Velha Gralha Azul (em extinção)”. Belos jardins, casa grande à
marimbondo e virei estancieira num insight sem capital de giro, nem lucro, nem
nada, mas eu era um arado naquela terra, como girava. Cresci muito como personagem
de cinema mudo. A arte da ambiência e do ambiente se impunha viva. A poesia
concreta me rodeava por todos os lados. Daí a pausa prolongada das minhas
crias.
Já viúva, após o cumprimento de trinta
e quatro anos de calvário por equívoco dos jurados, que me julgam até hoje na
tentativa de consertar o terrível engano e fazer justiça, afinal são todos
dignos e de boa-fé. Durante aquele tempo trabalhei às cegas como vaca de
engenho em círculos com antolhos e tudo para alimentar os filhotes com farinha e
açúcar.
Como farmacêutica de faculdade pública
hoje integrada na UFSC, formada em 1958, nunca me realizei. Considero-me até
hoje uma curiosa artesanal na linha fitoterápica: chás, poções, xaropes,
ungüentos, pomadas e derivados afins.
Andei lá pelo IBEHE me informando em
Homeopatia durante dois anos e consegui alinhavar uma tese na filosofia
homeopática enfocando-a no Desenvolvimento Moral da Humanidade, talvez publique
um livro sobre o assunto, por que é muito instigante. O maior interesse era
equilibrar-me para entender a polêmica entre os meus filhos médicos. Na verdade
não havia polêmica nenhuma. Todos concordaram finalmente que a homeopatia era
apenas mais uma tentativa de cura para os males da humanidade, na busca de
vencer a morte.
Viciada em escola me considero até
hoje, já com 70 anos e aposentada, aluna e mestra.
Sou religiosa da linha ecumênica.
Embaso tudo na consciência cósmica do Universo.
Que belo! Enveredo pelo assunto engatinhando em física quântica.
Fascinante.
São Paulo, 27 de abril de 1997.
Marlene Perez - Lene