terça-feira, 24 de setembro de 2013

CONTINHO DO VIGÁRIO




I - EXALTAÇÃO – ESTÍMULO -- AQUECIMENTO:

Parabéns! Liberdade condicional, hein?! Férias à vista, compras a prazo. Novidade. Movimento. Compromissos múltiplos sem horário. Presente. Dinamismo. Fuga da inércia depressiva de trabalhar 1,2,3 períodos por dia. Vida por dentro e não por fora. Gozo do in e não do ex. Liberdade de condução. Direção própria. Autonomia. Trânsito livre por helicóptero. Uma trégua da burocracia, da pesquisa, da ré-visão, do continho de professora. Da poesia evasiva. É a vez do poema práxis, pragmático de Piaget  Aqui e agora, vamos colocá-lo em prática, minha filha, e atrasada. Não se esqueça da teoria-lei 5.692/71. Mãos a obra, de portas e janelas abertas. Higiene completa. Ciência esperta, profilática, experiência: curiosa descoberta no habitat. Descanso visual. Abandono total das lentes muletas da intelectual, hein? Terapia da miopia: o Tudo-Fim-de-Mundo, um nada embaralhado. A sua entrada apoteótica impressionista, um Quadro de Artista, i-n-mundinho-ninho desfeito pelas cobras da Ave-Eva-Moderna-Expressa. Um milagre de Cristo, a volta por cima do paraíso perdido, o Reinício do feito. Quebra da rotina. O clímax dos achados alarmantes, um calmante; das permutas absurdas, um motivo de orgulho da boneca prendada, que comprova a sua audácia e temeridade.
A sua presença indispensável! A vitória da Fúria! Brilho da Estrela-única! Panorama-dama da organização dramática! Dona das regras, produtora, contra quebras. Luz simétrica. Musa-métrica do método. Seqüência lógica, viva, comédia lírica. Censura lúcida da infração inflacionária! Descoberta inédita de peças engavetadas! Publicação de todos os artigos perdidos! Aproveitamento do espaço, propriedade! Anúncios magnéticos. Controle e segurança! De-cor-a-ção automática: Botão em casas. Espécies separadas, reunidas pela varinha mágica da Fada! Segredo perfumado da economia doméstica em revista Ela! Harmonia perfeita. Ambiente e gente em ambiência poética. Democracia entre sexos: recreio colorido masculino: desenho animado, Os Trapalhões, O Planeta dos Homens, O Fantástico e Esporte Espetacular no sofá X ginástica rítmica feminina contínua. Sauna gratuita, entre na linha, entre filha, a casa é sua! Não tenha dúvida! Está apenas desapontada de emoção, de saudade. Esteve sempre de ponta-a-cabeça praticando yoga, para suportar a sua ausência. E não saiu da posição com o propósito barroco de recepcionar a sua chegada com a inversão clássica, enigmática da charada acrobática. Não seja ingrata. A intenção é válida: convite ao jogo da paciência repousante depois de um fim de ano pesado. Tudo de leve, descoberta de figuras desfiguradas, de sujeitos e objetos, de chaves por perífrases, antíteses e anástrofes catastróficas. Análise, menina, sem psicólogo monótono. Paradoxos para matar o seu tempo, estimular o seu potencial artístico, denso, pela catarse da participação ativa: única oportunidade de chegar ao significado pelo insignificante de simples imagens complexas, indecifráveis, surpreendentes. Mas não se surpreenda. Todos os excessos são pródigos, filantrópicos, próprios da indecisão de anfitriã rica, exagerada, que só deseja agradar. Esperava ansiosa pela Vedete da festa para decidir, ficar de pé. Virar, mudar de estilo, dar meia volta, esportivamente. Espetáculo à moderna. Vamos, troque de roupa: rancheira sem perder a classe. Um toque de romantismo: malhinha nostálgica decotada, lenço colorido nos cabelos à espanhola, avental bordado com rendinhas à holandesa e chinelo de dedo à havaiana, pretinho do avesso, Cocotinha! Você está uma princesa versátil. Remoçou 10 anos, nem sombra da Rainha do Lar, doce lar. Aprovada, pronto! Como aluna radiante, voluntária que volta ao lar paterno com um projeto: Rondon. De mala a tiracolo para os primeiros socorros. Vamos começar com o 1º ato de caridade? Calminha, devagar. São muitas peças e tomadas de cena, figurantes, cenário imenso, flora e fauna reunidas e amigas.. Desmanchou o rococó? Ótimo. Parta para o arcadismo. Arcará com tudo e se sentirá útil pastora, depois romântica. Reagirá ao mal do século e dará uma de positivista, naturalmente. Macaca autêntica. Em seguida um símbolo de gente, subirá até nas paredes e em uma semana inaugurará o modernismo, cantarão todos os eletro-domésticos. Publicará seu dada-ísmo. Finalmente tudo entrará nos eixos. Suada, surrada, voará surrealista e de Asa-delta da nuvem embaçada e cairá vesga, antropófaga para enfrentar fevereiro existencialista à espera do seu cargo famigerado de professora idealista, efetivamente refeita, segura, uma nova Eva, anjo de mestra, envergando lunetas e uniforme branco. Tudo, porém, depende de você, Martírios!
Disseram-lhe: Vá, Martírios, e não dê notícias. E se apresente em 77 para acertos de contas. Leve consigo os mandamentos. Decore-os e pratique-os.


II – Mandamentos:

Vida ao ar livre mesmo poluído. Pensamentos sadios. Faça faxina na sua casa: terapia. Desinfete tudo, extermine as baratas, as pulgas, as moscas. Livre-se de todos os vermes. Lave o cachorro e o gato com xampu de cachorro para gato e sabonete de gato para cachorro, última descoberta de bricolagem. Com cuidado para não tratar o cachorro de gato e vice-versa. Não se esqueça da biblioteca: livro por livro, todos sacudidos de um quilo de asfalto e esterilizados e agrupados por assunto, autor e etc, com muita estética. Limpe a lataria do museu com Silvo. Vai ficar aquela prataria que enganará todos. Lave todas as cortinas com Omo, pendure sozinha, ótimo para a linha. Carregue os tapetes para fora. Não pode? Muito pesado? Não se preocupe, o Espírito Santo lhe dará uma mãozinha. Bata com paciência e energia, feche os olhos, esqueça os cabelos, você ficará misteriosa de cinza, irreconhecível. Deixe no sol, porém olhe o céu. Ao primeiro pingo, carregue tudo para dentro rapidamente para evitar o mofo e passe o aspirador, removedor nos mais velhos, vinagre nos novos e enrole.
Comece a limpar os vidros com água e sabão e depois álcool para dar brilho. Tudo por dentro e por fora. E não se esqueça do jornal para tirar os pelos e as manchas gordurosas. Trepe na janela. Use calça comprida e escada, vire macaca. Não se esqueça do chão, precisa refletir você, linda de morrer, lá no seu devido lugar. Varra tudo primeiro. Se for alérgica à poeira, tussa à vontade e limpe o nariz no avental muito limpinho, afinal não tem ninguém em casa. Todos estão trabalhando e estudando. Só você de férias. Continue no chão. Passe removedor e cera Powask e depois, naturalmente, a enceradeira. Não desanime, não escorregue, agora ficou mais leve. O milagre é da energia elétrica, afinal, você ainda é feliz por ter enceradeira, obra do Espírito Santo e depois são só quatro quartos, um salão, dois banheiros e uma copa-cozinha. Não é nenhum palácio e você, nenhuma Cinderela para ter escrúpulos de ser gata borralheira no seu próprio ninho. E deixemos de filosofia, vamos encerar a cozinha, mas antes limpe todos os armários embutidos por dentro e por fora com benzina. É claro, depois de retirar tudo e lavar muito a louça não usada para remover as crostas amarelas do tempo. Você pensa que o seu exaustor é de ferro, tem nariz de frigideira? Coitado! Você precisa ajudá-lo. Não vá cometer a asneira de esquecer dos azulejos até o teto. Voltam a escada, o jeans, muito bombril e água. Orgulhe-se! Não é qualquer um que possui azulejos até o teto, muito chique.             
Limpe todas as paredes com aquele produto americano que você comprou na sua vizinha Nerina, naquela reunião de praxe que você descarregou a Nerina e o seu bolso e saiu carregada. Você não queria, eu sei, era caríssimo, mas agora com a maxi, uma ninharia. É verdade que um potinho não dá pra nada, claro, é o teste. Vai adorar. E depois é só comprar mais. Sinta-se uma vez na vida a Jane Powel, não esqueça do laçarote cor-de-rosa, mate as saudades da matinée à tarde, queridinha. Muito fácil, massa corrida. Não deu pro gasto? Muita gordura na copa e até nos quartos? Seja prática e use o Limpol, sabão, amoníaco, potassa. As mãos? Já esqueceu do creminho para as mãos da Nerina que tem um cheiro de rato morto? Então, use à noite, ninguém vai perceber. Quando você for dormir, a sua cara-metade já estará roncando. É a oportunidade do retorno do Realc-Glô que lhe custaram uma semana de aulas! Não choramingue. Suas mãos de fada merecem mais, ficarão sedosas como uma rosa.  Arregace as mangas e mande mais Bombril aos quilos com esponja, Perfex e etc. Tá bom, tá certo, pegue aquela mangueira de quinhentos metros com cem toneladas e mande brasa, digo, água. Sinta-se o bombeiro, tão dignificante!
Mas que reboliço! É quase hora do jantar e nada de requentar almoço nas férias. Que horror, afinal agora você tem tempo até pra você. Então, você rodeada de sorrisos? Surpresa, prato novo, sobremesa. O chão está uma lagoa. E daí? Cabecinha de vento! É só pegar o saco e de quatro vá torcendo no balde. Uma tortura reconheço. Está arfando? Respire fundo, assopre, minha Super Woman. Viu? Secou tudo. E até você. Não queria emagrecer?
O seu sobrado é todo acarpetado? Mas sujo não dá, né nega?
Deixe para amanhã. Levante-se bem cedo. Antes de tomar banho olhe-se no espelho. Faça o seu desenho. Tire uma cópia com papel carbono. Aproveite a ideia para bolar a sua máscara para o próximo carnaval com previsões astrológicas de defesa para cenas greco-romanas da antiguidade tragi-clássica de teatro: original carnaval de 77 sem tréguas. Confie no 7 (sete) para pintá-lo à vontade com cara de pau. É o ano da chance. Ninguém acreditará que a colombina virou Messalina, que a Julieta virou Lucrécia. Você será só Amélia. Portanto, acorde, Martírios! Onde você deixou os tapetes? No sol. Mas já olhou o céu? Trovoada de verão. Rápido. Cada gota  enche um balde. Estão mais pesados? Claro, que ingenuidade! Você pensou que suas fracas batidinhas iriam livrá-los de todo o potencial de lixo, pulgas, mosquitos e detritos orgânicos contaminados de coliformes fecais? E as cobras, gataria e cachorrada que andaram por aqui para contaminar tudo enquanto você dava aulas? Mas não seja burra. É a lei da gravidade. Não é nada grave. Não vai querer discutí-la. E muita coisa você atraiu com a sua cara melada e irreconhecível após aquela aplicação de rinsage cinza-prateada nos seus cabelos, meio quilo do produto voltou para o seu devido lugar em mingauzinho. Mas não seja ingrata. Não faça tempestade em copo d’água. Apenas oito tapetes úmidos e menos imundos. Um pingo de peso. Mas valeu a pena, voltaram diferentes, esfumados, maquiados, estampados, de nuances derivadas, manchados como você queria, artista. Moderninhos, viu? Surrealistas finalmente. Vão fazer sucesso com as jovens visitas de rancheiras desbotadas. Afinal, logo logo a mamata das férias termina.



III – Férias Reais:

Sorridente entrou a professora na escola, toda de branco. Um anjo. Cumprimentou as colegas. Adorou sua turma, não reclamou nada.  Na sala de aula, não fez a chamada. Todos em silêncio de expectativa. Martírios abriu o jornal do dia, mandou a turma fazer cópia da última lição. Finalmente de férias, deu um grande suspiro de alívio como este continho do vigário que agora termina e volta ao início logo, logo porque é cíclico, infelizmente...

Marlene Vieira Perez - MPerez
(Original da década 70, adaptado em 24/09/13)