quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O VALE DA BOA SORTE




I - O VENENO DA COBRA


Nossa história começa quando eu saí da casinha do caseiro para uma casa maior construída aos poucos, tipo embrião, que nasce mais perto do morro e longe da estrada. Não estava pronta, só o suficiente para entrar e ir me aninhando assim como pássaro talvez fosse meu último viveiro. Passei a recriá-lo. É gostoso e estimulante ir recriando o canto da gente até emudecer. Crescemos quando o espaço parece se alongar? Não, o espaço se alonga quando crescemos. Como gostaria de defender uma tese. O tempo se prolonga na beleza desse meu canto longo ou breve e não cansa. O nosso espaço só traduz a liberdade quando espanta a solidão. O canto se propaga. Interessante, não há filhotes humanos, mas eu me procrio todos os dias com a natureza. É como casa cheia com muita harmonia. Tudo são acordes para a vida até na rotina ligada à sobrevivência. A minha poesia ainda precisa de um quarto fechado, mas não me sinto presa. É como se não houvesse paredes. Reconheço, no entanto, que não há natureza viva ou morta que substitua a humana.
A cachorra late às vezes no mesmo compasso do meu canto em silêncio. Eu fico alerta. Interrompo e me lembro que está com fome. A Malu me desperta para sua realidade sem perceber que é mais ou também minha. Levanto-me e vou esquentar seu grude caprichado. O cheiro da comida é gostoso, me abre o apetite, então como alguma coisa da geladeira e saio com o prato da cadela, troco sua água escaldante, afago-lhe a cabeça. Antes de comer, me lambe as mãos e seu olhar é tão significativo, tão poético que eu lhe daria um prêmio Nobel. Não sei se da paz, de literatura ou de psicologia. A Malu é o meu poema concreto, vivo, que se coça para expulsar os parasitas invasores. Recuso-me a recriar a minha cachorra Malu. Poema não se emenda. Estou banindo no momento todos os sentimentos de culpa, por que arranjar mais um, não acham? Crime que a Malu como uma verdadeira pastora alemã que se preza não me perdoaria e Deus me livre de me indispor com esta amiga tão pura, tão bela, tão útil e tão fiel. Se desço o morro à noite (verdadeira pirambeira cheia de buracos e cascalhos escorregadios ensebados de barro) mal iluminado, dou de cara com a Malu que vem ao meu encontro e se encosta às minhas pernas. Se eu me assusto e paro ela fareja em todas as direções, abana a cola e me olha. Está na hora de prosseguir. Que energia me passa, que coragem, que alegria de estar viva! Sem dúvida a Malu é um grande dia. Até quando escrevo, ela dita. Puxa vida! Sou uma artista, nem preciso de média, de mídia, de concurso, atravessador e etc. Com ela eu me sinto heroína dos filmes de matinée, uma criança, mas no fundo reconheço que a Malu me desbanca de dentro da sua humildade de figurante, sem esperanças de fazer carreira e de um dia chegar a ser protagonista, mas ela sabe que é a minha favorita. A Malu também sabe que vai morrer. É diferente da galinha da Clarice Lispector. Não é só instinto não. Quando estou doente, não sai do quarto com cara de vigário, extrema unção, agouro de enterro, marcha fúnebre. A diferença é que o vigário não chora. Eu nunca vi. A minha Malu gane e verte lágrimas. Sei que ninguém acredita, acham que é delírio. Para tranqüilizá-la eu até melhoro, me levanto, ela abana a cola, olha a porta. A Malu deduz tudo por indução. Craque em lógica e matemática. Deu pra deduzir que também morre. Quando fica doente agora faz muita manha. Há dor de separação e angústia no seu olhar. Ela manca levemente de uma perna, sofreu um acidente, ficou toda engessada e me deu um trabalhão; mas obediente, ficava quietinha e tomava as injeções sem um ai. A Malu não dispensa comentários. Mas dispensa poemas e eu respeito e a amo. A última descoberta da Malu é dar mancada psicológica, porque sabe que me dobra, eu quase acredito, pensando bem, nem finjo. Acredito mesmo. Os caminhos da Malu são magníficos e afiados. Bota pra correr morcego, jararaca, corais, jiboias, caninanas, etc.
Aqui há um ninho de muriçocas que a Malu pega no ar com a língua e detona com lábia. No bananal descobriu-se colônias de ofídicos belíssimos, coloridos, fingidos, louquinhos pra dar o bote. Principalmente as jararacas, as corais, as urutus cruzeiro, cruzado, real, do-lar. As jararacas são agressivas, mas as corais não. Para as últimas, não há soro específico aqui no Brasil, só importado. - Aqui na Barra de Sambaqui talvez dê tempo de subir o morro quando picado por uma coral, rezando o Creio em Deus Padre já de cabeça pra baixo e no topo entrar na igreja, se estiver aberta, às direita para velório, moço!...pro mode qui tem qui dá cabo delas. – fala o caseiro meio capataz, de olhar sombrio. 
No começo, quando vim morar aqui, o caseiro as pegava vivas pela cabeça para mostrar sua destreza, coragem, pleitear aumento de salário sem greve e sem botá no pau da CLT. A dona Rosinha benzedeira ficava encantada. – Mata e coloca num vridu com arco pra infeitá a parteleira dos livru, ispantá as visita marfazeja, tirá mar oiado, miór é botá a bicha viva no vridu dentro do arco, sorta o veneno e se arguém fô murdido é só toma um trago i reza. - Eu me arrepio, solto risinhos nervosos e me lembro do Mário de Andrade em “Namoros com a medicina”, meu livro atual de cabeceira. Então liberei o caseiro Prazeres para a próxima vez realizar a façanha, assim colocaria mais uma notinha no livro do Mário, de extrema importância. O Prazeres matou a cobra com tristeza, saiu cabisbaixo, acabrunhado pela inflação, sonhando com o aumento antes do oficial. Mas reagiu. Deu uma “vortinha” e apareceu com um colosso de corar, a meter inveja o nosso presidente eleito que na época era só candidato o FHC. Se ao invés de Lula tivesse que competir com aquela cobra, estaria frito e canonizado como Tancredo. – Num assunta muito dona, a bicha ta assanhada e também pica cá cola num si pode abusá, u vrido ta pronto? E o arco? - Graças a Deus o álcool ainda não estava racionado nem com metanol. Fui correndo buscar o material toda orgulhosa, recordando-me das minhas primeiras aulas de ciências. Larguei o vidro aberto em cima da mesa e fui pegar o álcool embaixo da pia. Quando levantei o corpo e olhei pra mesa, o Prazeres já tinha colocado a bicha dentro do vidro aberto. A cobra se revirou, botou a cabeça de fora e logo um pedaço do corpo. Eu disparei com artrose e tudo, teria ganho o Aquiles de Souza aqui da ilha que tem um quadro de medalhas por corrida de fundo, segundo o próprio porque o nariz chegava primeiro. Na corrida eu saí com o arco na mão e sem nenhuma flecha, infelizmente. Olhei pra trás para situar a competidora. O Prazeres rindo me perseguia com a cobra pelo pescoço. Entrei na Derça, a festeira do vale, que carrega a pombinha do espírito santo, vende peixe, marisco, ostra...uma figura tão rica que merece um capítulo à parte. Como aqui no vale não tem pronto-socorro nem pronto-bombeiro e muito menos pronta-polícia, ah, e nem pára-raio, todos são prontos à dona Derça com cobrinha no nome, como diz ter aprendido pra votá no Collo, por respeito à divina pomba colorida do espírito santo, a Derça é a mais pronta, a sirene do alarme. O marido e os filhos pescadores e pinguços lularam, mas não urraram com a derrota, aceitaram pacificamente e entraram na festa da Derça que soltou foguete, distribuiu tudo que vende de graça com materiar duado pelo diretóro du partido du moçu. O alarme da Derça é infalível. Ressuscita até o senhor morto, dispensando a Verônica com o seu canto, puxa coro, coral, novena, terno de reis. Chama os filhu i as vaca nu campu; já sofreu um derrame. É outra que manca, mas não se entrega. Sobre o derrame da Derça, eu escrevi uma crônica que eu não sei se é de rir as pedras ou fazer chorar todos os reis. A Derça me empolga, deixa Iemanjá no chinelo, é natureza pura e ecológica, toda verde e amarela. Vai me dar muito trabalho no próximo capítulo, porque é deveras complexa. Imaginem que se dá ao luxo de usar o microfone dasigreja (que ela arranjou com uns policos) e agradece mocionada o ajutóro prá saí asigreja. A miss universo se esconde perto da Derça no discurso de agradecimento.
No dia em que eu fui fazer o cateterismo (muito na moda), sofri um incêndio em casa, ela arrombou a porta e deu cabo do fogo com sua trupe. A fumaça chegou no morro, então os bombeiros resolveram dar um passeio no Vale da Boa Sorte com viatura e repórter. Naturalmente, tudo já estava apagado, mas o fogo da Derça deu entrevista e saiu nos jorná, pena que foi di costa, disaforo. Como não sabia de nada disse que a dona da casa tinha deixado o feijão ligado e fora comprar arroz e já pediu pros policos um postu de saúde pracudi o povo e um oreião pro morro do Vale da Boa Sorte. O fogo foi na sala devido a uma ponta de cigarro do Prazeres que meio piro pirado pôs fogo, mas saiu nos jorná na cozinha mesmo. E a alegria da Derça mostrando o cachorro dela nos jorná (o Bidu que se vira no lixo e só come espinha de peixe e é gordo como um porco por milagre do Senhor dus Passo!). Por falar em porco, a Derça cria um pela corda como cabra, o porco da Derça só come mato, é vegetariano, naturalista, ecológico do PV e está gordo como uma anta e condenado pra próxima festa da Aleluia, pro leilão. Quem ganha geralmente é a Derça mesma, o vigário ou o xerife, um tal de Mazinho, traficante considerado home de respeito, carrega o andor e angaria dinheiro nas porta, já foi preso por causa do baseado, mas foi logo sorto. 
Mas pegando o fio da meada, paramos quando eu corri na frente e o Prazeres com a bicha atrás pelo pescoço e eu entrando na Derça, o quebra-galho- quebranto, e zipela, doença mardita do mar. Então, afobada, fui falando na cobra com cara de espuma de Omo dupla ação ou Minerva Três ou ainda o jaleco de médico estudante. A Derça alarmou a cuminidade em busca de socorro e merda seca de jumento, jegue ou genti mesmo pra botá na dentada e rasgavam o lençol pra fazer uma amarração. Já sem sarvação, mas a Derça não se entrega, muié de fé, falavam os vizinhos. Um outro no meio conselhava: - Mió chamá o vigáro Onofre, rezá o terço e incomendá a arma. Uma voz forte gritou seguida de um coro fraco: - Já morreu? – o pessoar invadiro o rancho. Outra voz: - Chama o Tonico, o único motorista de táxi que mora no Vale e tá sempre torrado, mas serve pra essas horas. Enquanto isso, o Prazeres explicava o causo, mas ninguém assuntava, desejava convencer que a vítima não tinha sido picada, tudo em vão. Procuravam a ferida e já me tiravam a roupa empurrando-me pro quarto do casar. – tudo aqui é muié, não precisa tê vregonha, não, dona Marilu, é pra sarvá sua vida. Mas o que me sarvo foi o seu Orlando marido da Derça, home carmu, pacato, muito farso, mas respeitado. – Vamô pará com essa gritaria, se a muié fosse murdida já tinha morrido. Seu Orlando tinha dado ouvidos ao causo do Prazeres então todos seguiram em procissão rumo a minha casa, eu vinha quase carregada como santa, agarrada ainda à garrafa de arco já da véia. – Milagre Milagre do espírito santo, gritavam todos. Merece nuvena. Aí o Prazeres foi o herói do circo, num silêncio de morte caprichou no ritual. Seu Orlando pegou do álcool e empurrou a cobra pra dentro do vidro com a cabeça pra baixo e foi despejando rápido com a tampa na outra mão. Hermeticamente fechada e afogada, a bicha começou a soltar um líquido verde escuro. – Levantem o vidro! Levaram para rua. A dona Derça pediu pra segurar e de mascote liderava a procissão pra mostrar de casa em casa o remédio da serpente do paraíso agora beatificada e santificada no Vale da Boa Sorte. 
Eu finalmente sozinha fui em busca do meu Co-Renitec, remédio que tomo após o infarto silencioso de 1º de maio de 1988, com Sustrate e Mixitil, o primeiro para pressão alta que sempre sobe mais quando se vai comprar o remédio, na época custava 300 cruzeiros a caixa, o segundo contra arritmia e o terceiro contra vaso entupido pra dilatar tudo. Quando me dirigia para o quarto, o Prazeres bateu na janela pra ajustar o salário, concordei prontamente pro mês próximo, mas ele queria um dinheirinho vivo porque era sábado: - Paper não aceitava, num dava pra trocá no Vale da Boa Sorte. Levantei-me cambaleando, dei-lhe meus últimos 100 paus vivos e sem pau nenhum pras emergências e mais viva do que morta ou do que nunca, fui dormir sozinha. Como valorizei a vida e a solidão para pensar. Rezei e tentei ir dormir. Que vontade de escrever, de rir, de chorar, de abraçar todo mundo, gritar no vácuo, louvar a natureza. Eu me lembrava dos meus sonhos com cobras e da interpretação enigmática de dogmas do baralho cigano e do pecado originalíssimo. Por pouco não tomei chá de bosta. Fiz uma promessa: vou fazer apologia da merda. Bateram na janela para me devolver a coral. Tive que fazer um discurso de polico, me rebolando na diplomacia pra dar de presente a cobra pra dona Derça. – A cobra é sua. – Não, é da senhora. Mas é remédo e o ninhu é aqui. – Aonde? – Num sassuste, é lá no morro, tá longe mas ninguém dá cabo delas. – Mas a senhora leva, que anda mais descalça no campo pra pegar as vacas. – Nu campu num tem cobra, é nu morru e nu corgo e no meio das pedras. – Mas a senhora tem filho, neto. Dona Derça, eu não quero mais cobra dentro de casa. – Tá morta, muié, não faz mar a ninguém, inté é remédo. – Dona Derça, então a senhora joga bem longe no mato. – Não, dá azá, vira sombração. – Então a senhora queima. – Dá cobreo si arguém pisa na cinza. – Está bem, Dona Derça, então me dá a cobra que vou guardar pra remédio. Tremendo peguei o vidro, fiz um buraco e enterrei. Desta vez mais morta do que viva, resolvi tomar um banho e me atirar na cama. Muito pernilongo, barulho de sapo, mugido de gado, zunido de carocha. Acordei com o barulho dos quero-queros, tico-ticos e outros lindos de rabo comprido, gralhas azuis, quase todos nos pés de angazeiros e de jabuticabas. Valia a pena o Vale da Boa Sorte porque não há tempo pra depressão e quando o nosso canto é invadido entra-se no coro da procissão. Que tendência maravilhosa, humana e instintiva tem este povo de se unir em tribo, em passeata para resolver seus problemas sem greve, na base do elo, da corrente, formando sociedade e se civilizando com tanta fé e esperança, se divertindo com o menor acontecimento. Brigando e fazendo as pazes de imediato, sorrindo por coisas tão pequenas. Será que são felizes? Apenas vivem.
Fpolis/novembro/94 - Marlene Vieira Perez - MPerez

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