terça-feira, 24 de junho de 2014

SOLIDARIEDADE IMPOTENTE


Sinto comigo a dor profunda
da solidariedade impotente
berro em cada verso
agarro desesperada uma palavra
de apoio
saturada foge
rogo uma praga
mergulho fundo, pulverizado
     - e na trilha meu traço de sangue
corrige o brilho do strass
e conserva o ritmo grave agudo
em alta fidelidade
um ruído (a estourar os tímpanos?)
da chuva no telhado de plástico
da goteira na cozinha anêmica
do pingo de leite na mamadeira
da gota poluída na boca desdentada
do dedo de pinga na goela da vítima
A cirrose escarra a estrofe
num eco previdencial
os coágulos se alinham poéticos
na fila da providência...


Marlene Vieira Perez - MPerez

REFORMA



A mariposa ameaça a carga
                         nas derivadas
a energia
a matéria
                                diluídas
num átomo
                num século
                                buscam
        unidade de átomo
na forma
                a verdade
                                do rei
                                       do burguês
O poeta do rei
                o poeta            do plebeu
                                na órbita
o poeta em órbita
        (se) perde
               compromete
               condena
nas alternativas
                                a legenda
a ponta da língua
                                       azul
                                       vermelha
lambendo a vida
                                       por um pavio
um homem
                                       se apaga
sem parabéns 
                                       para você
entre as galáxias
                                       segura uma página
uma caneta
                        esferográfica
                                       acesa
                                       provoca
a mariposa
                                       as estrelas
um rei             
                        um burguês
                                       um plebeu
O poeta
                        (se) salva
                             reforma
                        agrariamente
o universo       
                                       a obra
em cada planeta
                                       um poema
brilha
                        a vida
                                       se derrama
na corrente
                        livre
                                       em todos os estilos
infinitamente
um rei um burguês um plebeu um rei um burguês
                        convivem...o poeta
vive

MPerez – SP - década de 80

sábado, 21 de junho de 2014

Escola Pública

Escola Pública
Abril de 79
Texto para o livro O trem da educação (reflexões em intervalos)

Sino Sino Sino
estridentes
conflitos
fila cativa
semblantes aterradores
suores
olhares pesados
raiva fome medo
rotina nos uniformes feios
puídos
encardidos
chamada chamada chamada
adultos bizarros atrofiados
escravos devastados
turmas esquálidas
trevas nas calçadas
filas filas filas
sentadas eternamente (pra quê?)
bocejos, pó de giz, odores agudos, acres
chamada chamada chamada
algazarra
cópias teóricas de aulas
De repente novidade asséptica
ficou para sempre na história
do “Leonardo Vilas-Boas”
                       - Hoje revista patética de piolhos!
Nem se falou mais do lanche de galinha
Berros berros berros
Ordens ordens ordens
Reflexão:      Como pode ser tão pequena,
frágil e infimamente submissa
essa clientela adolescente?
Banco banco banco
Castigo castigo castigo
Proscritos
Vou ter um enfarte já
cair de quatro
pensa uma ameaça exata de defunto
com cara de professor de matemática!?
- Aulas suspensas!
- Apagou a luz?
  Apagooou apagou.
  Velório improvisado
- Ótimo, gritava o coro
  com cara de enterro,
  coração de gelo.
-Aqui jaz ao cubo mais um mestre
  autêntico cadáver público
- Sino Sino Sino

Nem um minuto de silêncio

Marlene Vieira Perez - MPerez

HORA E MEIA DE TÉDIO NA FACULDADE

Tédio 
(À uma professora de PSICOLOGIA!?)

Jazz primitivo
instrumento nasal
aquilino à la árabe
cabelos desgrenhados
à la marcela galega
ralos uriçados
olhos de ratazana míopes
a espiar por dois antolhos
dentes de coelho sem charme
lábios insípidos magros
queixo articulado num papo
mole antipático

Jazz primitivo incansável
agulha velha em disco arranhado
monotonia harmônica
sem altos nem baixos
mãozinhas de macaca branca
de veias saltadas e unhas de gata
machucadas
traindo madrugada de cio frustrado

Garganta de angolista
flácida
provoca o selvagem
estimula o sádico
arma os dedos do tarado
para uma pressãozinha delicada
sonho mudo de silêncio
contra o barulho exasperante
violentando o fundo das horas preciosas

Roupa de couro
esconde corpo murcho ossudo
pelos tímidos
espaço azulado retorcido
jamais explorado...(virgem?)

Pernas invisíveis
dois cambitos de Serafina
possíveis joanetes brigam
cavam túneis nas botinas
para arejar o provolone
ardido prolongado
em cinco mandioquinhas
quase degoladas
pelo coça frenético desesperado


Imagina a imagem 
o aluno 
e rabisca num cochilo 
a aula de psicologia


Marlene Vieira Perez - MPerez - SP

sexta-feira, 20 de junho de 2014

CARTAS NÃO ENVIADAS II - MÁRCIA DE AQUINO



São Paulo, 13 de abril de 1998.

Querida Márcia,

          Um abraço bem apertado e com muitas saudades. Não repares estar te escrevendo, põe por conta de “a Marlene gosta de escrever” e também “a Márcia gosta de ler”. Tentarei falar com o coração e não com a inspiração, deixemos o belo para o espírito, para o significado da essência e não para a estética sonora ou gráfica da aparência. Ok? Pena que tenha rimado. E me remeta para o embalo da poesia, mas é Marlene na dança simples do dia-a-dia, azulando com a caneta preta.
          Minha amiga, é claro que não dei teu kit para o asilo, é que somos artistas tão perfeitas e emotivas que codificamos e decodificamos uma mentira com mestria e quando a cena termina, a sequela do drama se assimila à vida e de repente, num sacudir do mundo dos vivos, com os pés plantados no chão e o sonho ainda se dissipando pelo ar, levamos um susto: “tenho que tomar providências urgentes: o que foi que eu disse?...o que foi que eu fiz”. Resolvi então escrever esta cartinha e me desculpar. Se, apesar dos esforços, ela não sair com aquela objetividade do contador honesto do IR ou da comadre Maroca de feira ou ainda do papo da Catherine Deneuve, no filme Chamada para o amor, desculpa a fellinidade irônica do argumento. Eu sei que faz muito bem este gozar as coisas pequenas, instintivas, a vizinha, o sol, o Gasparetto com o seu positivismo mediúnico e de consumo, a música romântica clássica ou sinfônica, o jarro de flores, o camelô com pequenas surpresas, o jornaleiro, a igreja vazia ou cheia, a padaria (do bacalhau, do “trident”, do sorvete diet ou mesmo cheio de açúcar), o supermercado, o não pensar, o pensar sem compromisso e o rir sem motivos, o filmezinho pornô ou melodramático. Fica tranquila, não vou te fazer de o destinatário museumático e eterno da linha dos Joões encantadores.
          Lamento muito estar morando longe, num lugar feio, trânsito infernal mas o meu reino é o meu céu, belo e colorido como a minha mesa farta e o meu sorriso que se transmuta em gargalhada, após um dito, um repente carregado de surpresa e eu me vejo fã de uma Marlene desconhecida, que senta na platéia de si mesma. Assim me multiplico e me povôo de réplicas ou de clones e me escondo nas folhagens e troco de nomes. Por onde ando planto muitas árvores e muitas flores, não há morada marleniana sem um jardim, uma cortina rosa, uma laço de fita azul, um abajur. Sou fada e cigana, dona de casa, poeta das horas vagas, anfitriã e cozinheira famosa na família, cheirando à ceia diacrônica só para esnobar e ser antipática mas sou também simpática na hora h do improviso, do convite sem aviso pra feira do livro, pra comentar Picasso, Proust,etc.,  as sinfonias do Beethoven ou o impressionismo do Renoir...e que tal escolher com aquele olho clínico uma pecinha  indiana colorida? Ah, ah,ah! Sabes Márcia, eu me amo, sou rica, ainda que me rejeitem por isso ou por aquilo, criticando-me negativamente com desculpinhas de alto astral. Eu gosto de ti porque só vês em mim como em todos o lado bom, otimista, inteligente, positivo, não é mesmo? Não perdes tempo me ofendendo, não é mesmo? Procurando defeitos, não é mesmo? As pessoas alegres e pra cima como tu não perdem tempo arrasando um amigo, não é mesmo? Aliás, concordo contigo em te afastares das bruxas, das moiras do tarô, das magísteres cheirando a mofo, à traça de livro, a pesadelo, a passado, a escolas de periferias horríveis, tupiniquins, a resto de escravatura, sem palácios, sem senhores, condenados a um destino sem volta (aqui merecia uma tese). Conheces Florianópolis? A ilha mesmo, conheces? A natureza é belíssima, as pessoas na sua maioria são bonitas mas a depressão ronda no ar! Por que será? Márcia, estuda bem o impressionismo e expressionismo e aplica na vida (ou tenta pelo menos o segundo). Se tu realmente estiveres colorida por dentro, alegre e bela, calma e tranquila, colocarás no cenário e nas personagens as tuas cores e verás beleza até no Corcunda de Notre-Dame, beleza do feio já tão divulgada.
          Goza a tua liberdade e não exageres ao pensar que teu mundo, o teu rico interior renunciarão a um bom papo filosófico, dialético e profundo; ninguém dorme psicólogo e sensível e acorda como a Dona Maria toda alegre, preocupada em comprar o pãozinho para o café da manha, a não ser, esporadicamente para quebrar a rotina como uma novidade. Mesmo assim temos que ter cuidado para não pintar a Dona Maria com o nosso expressionismo. Afinal, não podemos deixa-la triste com nosso pincel de grafite porque até as nossas tintas mesmo coloridas, buscam as sombras profundas de um bosque, de um túnel jamais percorridos. São nossas e intransferíveis.
          E não me queiras mal, é que mostrar sempre felicidade e esconder-se indefinidamente no avesso também cansa; um inferninho de Dante impressionista ou expressionista muitas vezes é terapia, quebra a rotina daquele céu fingido de coroinhas, de flores de papel crepom e anjinhos de forma.
          Márcia, eu agora até poderia ir na tua casa, tenho mais condições, porém temo te incomodar, ser inconveniente ao aparecer aí sem convite. Consultei a bola de cristal e segui o conselho.

Um grande abraço.
Marlene



segunda-feira, 2 de junho de 2014

MAIS UMA...

... de professora

- Eu deixo o seu jardim
num brinco

- de princesa? Risos...

- Sou paisagista, formado
faço até planta, projeto, arquiteto
tudo certo: começo, meio, fim...

- Sou viúva, moço, aposentada de professora,
pensão do marido congelada, não tenho grana,carrego pedra do riozinho do vizinho toda rolicinha..., Dr.Tabajara, advogado que já brigou muito comigo, mas eu não ligo, grama do pasto, olho de boneca do morro,
bromélia, samambaia, palmeira, cada planta e depois moço,
jardim não se acaba, é como mortalha, sai no grito
do improviso como verso atravessado que explode e...fica sempre no provisório, meio dentadura de pobre, medida política...

- Mas então é na base da sacanagem...

- Pensando bem, realmente o meu jardim é muito sacana, meio Macunaíma, preguiçoso, se espreguiça na sombra, no sol, mata piolho, não tem praga nem olho grande... muito comigo-ninguém-pode... não precisa de diploma, é romântico, na base do deixa cair
a semente do vento, do passarinho...tudo do mato bonito, só cuidar pra não invadir, vai florindo todo colorido como o arco-íris caído, as rolinhas ciscando bichinhos.... Carrego meu jardim nas minhas andanças e sem plantas, tipo ambulante, na cabeça, bastou pisar no chão ele brota
do coração. Preciso ainda dizer que o meu jardim é muito vivo?

MPerez - 01/06/14 - Rio das Ostras