São
Paulo, 13 de abril de 1998.
Querida
Márcia,
Um abraço bem apertado e com muitas
saudades. Não repares estar te escrevendo, põe por conta de “a Marlene gosta de
escrever” e também “a Márcia gosta de ler”. Tentarei falar com o coração e não
com a inspiração, deixemos o belo para o espírito, para o significado da
essência e não para a estética sonora ou gráfica da aparência. Ok? Pena que
tenha rimado. E me remeta para o embalo da poesia, mas é Marlene na dança
simples do dia-a-dia, azulando com a caneta preta.
Minha amiga, é claro que não dei teu
kit para o asilo, é que somos artistas tão perfeitas e emotivas que codificamos
e decodificamos uma mentira com mestria e quando a cena termina, a sequela do
drama se assimila à vida e de repente, num sacudir do mundo dos vivos, com os
pés plantados no chão e o sonho ainda se dissipando pelo ar, levamos um susto:
“tenho que tomar providências urgentes: o que foi que eu disse?...o que foi que
eu fiz”. Resolvi então escrever esta cartinha e me desculpar. Se, apesar dos
esforços, ela não sair com aquela objetividade do contador honesto do IR ou da
comadre Maroca de feira ou ainda do papo da Catherine Deneuve, no filme Chamada
para o amor, desculpa a fellinidade irônica do argumento. Eu sei que
faz muito bem este gozar as coisas pequenas, instintivas, a vizinha, o sol, o
Gasparetto com o seu positivismo mediúnico e de consumo, a música romântica
clássica ou sinfônica, o jarro de flores, o camelô com pequenas surpresas, o
jornaleiro, a igreja vazia ou cheia, a padaria (do bacalhau, do “trident”, do
sorvete diet ou mesmo cheio de açúcar), o supermercado, o não pensar, o pensar
sem compromisso e o rir sem motivos, o filmezinho pornô ou melodramático. Fica
tranquila, não vou te fazer de o destinatário museumático e eterno da linha dos
Joões encantadores.
Lamento muito estar morando longe, num
lugar feio, trânsito infernal mas o meu reino é o meu céu, belo e colorido como
a minha mesa farta e o meu sorriso que se transmuta em gargalhada, após um
dito, um repente carregado de surpresa e eu me vejo fã de uma Marlene
desconhecida, que senta na platéia de si mesma. Assim me multiplico e me povôo
de réplicas ou de clones e me escondo nas folhagens e troco de nomes. Por onde
ando planto muitas árvores e muitas flores, não há morada marleniana sem um
jardim, uma cortina rosa, uma laço de fita azul, um abajur. Sou fada e cigana,
dona de casa, poeta das horas vagas, anfitriã e cozinheira famosa na família,
cheirando à ceia diacrônica só para esnobar e ser antipática mas sou também simpática
na hora h do improviso, do convite sem aviso pra feira do livro, pra comentar
Picasso, Proust,etc., as sinfonias do
Beethoven ou o impressionismo do Renoir...e que tal escolher com aquele olho
clínico uma pecinha indiana colorida?
Ah, ah,ah! Sabes Márcia, eu me amo, sou rica, ainda que me rejeitem por isso ou
por aquilo, criticando-me negativamente com desculpinhas de alto astral. Eu
gosto de ti porque só vês em mim como em todos o lado bom, otimista,
inteligente, positivo, não é mesmo? Não perdes tempo me ofendendo, não é mesmo?
Procurando defeitos, não é mesmo? As pessoas alegres e pra cima como tu não
perdem tempo arrasando um amigo, não é mesmo? Aliás, concordo contigo em te
afastares das bruxas, das moiras do tarô, das magísteres cheirando a mofo,
à traça de livro, a pesadelo, a passado, a escolas de periferias horríveis,
tupiniquins, a resto de escravatura, sem palácios, sem senhores, condenados a
um destino sem volta (aqui merecia uma tese). Conheces Florianópolis? A ilha
mesmo, conheces? A natureza é belíssima, as pessoas na sua maioria são bonitas
mas a depressão ronda no ar! Por que será? Márcia, estuda bem o impressionismo
e expressionismo e aplica na vida (ou tenta pelo menos o segundo). Se tu
realmente estiveres colorida por dentro, alegre e bela, calma e tranquila,
colocarás no cenário e nas personagens as tuas cores e verás beleza até no
Corcunda de Notre-Dame, beleza do feio já tão divulgada.
Goza a tua liberdade e não exageres ao
pensar que teu mundo, o teu rico interior renunciarão a um bom papo filosófico,
dialético e profundo; ninguém dorme psicólogo e sensível e acorda como a Dona
Maria toda alegre, preocupada em comprar o pãozinho para o café da manha, a não
ser, esporadicamente para quebrar a rotina como uma novidade. Mesmo assim temos
que ter cuidado para não pintar a Dona Maria com o nosso expressionismo.
Afinal, não podemos deixa-la triste com nosso pincel de grafite porque até as
nossas tintas mesmo coloridas, buscam as sombras profundas de um bosque, de um
túnel jamais percorridos. São nossas e intransferíveis.
E não me queiras mal, é que mostrar
sempre felicidade e esconder-se indefinidamente no avesso também cansa; um
inferninho de Dante impressionista ou expressionista muitas vezes é terapia,
quebra a rotina daquele céu fingido de coroinhas, de flores de papel crepom e
anjinhos de forma.
Márcia, eu agora até poderia ir na tua
casa, tenho mais condições, porém temo te incomodar, ser inconveniente ao
aparecer aí sem convite. Consultei a bola de cristal e segui o conselho.
Um
grande abraço.
Marlene