terça-feira, 19 de novembro de 2013

BALANÇO DE FIM DE ANO



Balanço de Fim de Ano
São Paulo, 17/12/98

Nesta época festiva venho fazer o fechamento de um ciclo na grande família. Como diz meu filho poeta, o mais moço: jogar os laços de sangue pela janela da sociedade filhantrópica. Conferir o saldo, a receita e a despesa, o superávit do investimento para mudar a estratégia, a tática de guerra, sair do ramo e investir na própria vida já em fase de os últimos suspiros. As máscaras ao canto, em farrapos, clamam recesso de fim-de-ato. Todos agora são cobras, trocam de pano, de couro e ganham máscara nova com óculos à fantasia. Todos com mais de 30 anos são lachesis no dizer do homeopata quando principiante. Sob o fundo musical da Ave-Maria de Schubert, ouço meu mestre interior: ou me resguardo ou me exponho e será que me salvo? Você decide, anuncia a minha tevezinha arbitrária de antena interna, com transparência divina, florindo como poesia em dia de chuva, de cara molhada, como guarda em vigília: o espectro da insônia perpétua, jogado na rua que tolera, tolera e de repente multa. Era a língua do artista louco, do cientista, do sambista de morro em qualquer registro, até do bobo da corte e o balanço continua. Ouço a voz do poeta clamando justiça nas favelas e nos cortiços e a luz do operário, no comércio.  Enfim a luz, o talento e o brilho num cenário de manjedoura e a bandeira do injustiçado encantam, atraem e espantam mariposas e vampiros para salvar o recém-nascido. É a defesa do injustiçado! É a bíblia da consciência do pensamento. É a arte da mãe que se despede atrás de rima, sem piano nem flauta. São os extremos que sobem ao céu ou descem aos infernos e apelam. É o ritmo, o embalo dos escravos! O lamento dos condenados! A tristeza da festa aflora o poeta que sai do foco e onisciente prossegue famoso e enigmático, de coração aberto. Desarmado finalmente, agradece à família tudo o que lhe fizeram... e como a época é de promessa e reza, de juras e renúncia, discurso de formatura, indulto, jejum e retiro, caixinha de correio, mensagem, mesa de inocente, visita a asilo e missa do galo, se encoraja e pede a palavra de pé mesmo, de vela apagada sem altar nem nada devido à dupla osteoartrose e à estenose da aorta ilíaca que comprime o ciático, tudo aliado aos bicos-de-papagaio e à pressão alta, promete que nunca mais vai incomodar e agradece todos os favores, presentes e empréstimos com muito empenho e louvores. E já toda raiz torta bem encolhida, de eterna cabeça-baixa, se afasta pra sempre daquele meio. Afinal não tinha berço, filha de operário, honesto é verdade; trabalhador de sol a sol é verdade; sem vícios também é verdade; dedicado à família ninguém pode negar; mas tosco, rude, semi-analfabeto, um bicho do mato, um Cristo, também são verdades. Não tinha histórico de madame burguesa, nem ranço de provinciana metida à besta. E já pronta pra missa do galo, toda caipira de vestido estampado, entra de leve na igreja cheia e com linguagem de rainha a justificar o enigma, roda a baiana em silêncio, levanta a cabeça, encara as imagens imóveis de mármore, meio juízes implacáveis e desamparados, mártires pedindo clemência para serem salvos com um sopro. E o milagre do Natal acontece? Haverá sempre um próximo na esperança que não morre.

Marlene Vieira Perez - MPerez
Designer DougB

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