Balanço de Fim de Ano
São Paulo, 17/12/98
Nesta época festiva venho fazer o fechamento de um ciclo na grande família. Como diz meu filho poeta, o mais moço: jogar os laços de sangue pela
janela da sociedade filhantrópica. Conferir o saldo, a receita e a despesa, o
superávit do investimento para mudar a estratégia, a tática de guerra, sair do
ramo e investir na própria vida já em fase de os últimos suspiros. As máscaras
ao canto, em farrapos, clamam recesso de fim-de-ato. Todos agora são cobras,
trocam de pano, de couro e ganham máscara nova com óculos à fantasia. Todos com
mais de 30 anos são lachesis no dizer do homeopata quando principiante. Sob o
fundo musical da Ave-Maria de Schubert, ouço meu mestre interior: ou me
resguardo ou me exponho e será que me salvo? Você decide, anuncia a minha tevezinha
arbitrária de antena interna, com transparência divina, florindo como poesia em
dia de chuva, de cara molhada, como guarda em vigília: o espectro da insônia
perpétua, jogado na rua que tolera, tolera e de repente multa. Era a língua do artista
louco, do cientista, do sambista de morro em qualquer registro, até do bobo da
corte e o balanço continua. Ouço a voz do poeta clamando justiça nas favelas e
nos cortiços e a luz do operário, no comércio.
Enfim a luz, o talento e o brilho num cenário de manjedoura e a bandeira do
injustiçado encantam, atraem e espantam mariposas e vampiros para salvar o
recém-nascido. É a defesa do injustiçado! É a bíblia da consciência do
pensamento. É a arte da mãe que se despede atrás de rima, sem piano nem flauta.
São os extremos que sobem ao céu ou descem aos infernos e apelam. É o ritmo, o
embalo dos escravos! O lamento dos condenados! A tristeza da festa aflora o
poeta que sai do foco e onisciente prossegue famoso e enigmático, de coração aberto. Desarmado finalmente, agradece à família tudo o que lhe fizeram... e como a época é de
promessa e reza, de juras e renúncia, discurso de formatura, indulto, jejum e
retiro, caixinha de correio, mensagem, mesa de inocente, visita a asilo e missa
do galo, se encoraja e pede a palavra de pé mesmo, de vela apagada sem
altar nem nada devido à dupla osteoartrose e à estenose da aorta ilíaca que
comprime o ciático, tudo aliado aos bicos-de-papagaio e à pressão alta, promete
que nunca mais vai incomodar e agradece todos os favores, presentes e
empréstimos com muito empenho e louvores. E já toda raiz torta bem encolhida, de eterna
cabeça-baixa, se afasta pra sempre daquele meio. Afinal não tinha berço, filha de
operário, honesto é verdade; trabalhador de sol a sol é verdade; sem vícios
também é verdade; dedicado à família ninguém pode negar; mas tosco, rude,
semi-analfabeto, um bicho do mato, um Cristo, também são verdades. Não tinha histórico de madame
burguesa, nem ranço de provinciana metida à besta. E já pronta pra missa do
galo, toda caipira de vestido estampado, entra de leve na igreja cheia e com
linguagem de rainha a justificar o enigma, roda a baiana em silêncio, levanta a
cabeça, encara as imagens imóveis de mármore, meio juízes implacáveis e
desamparados, mártires pedindo clemência para serem salvos com um sopro. E o
milagre do Natal acontece? Haverá sempre um próximo na esperança que não morre.
Marlene Vieira Perez - MPerez
Designer DougB
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