sábado, 13 de outubro de 2012

AUTOBIOGRAFIA III


III

Sou filha de coração de São Paulo: matéria prima, ritmo poético da minha vida, embalo contínuo.
Quando entrei na USP meu auto-conceito subiu. Em plena descoberta de quem eu podia ser, eu era mesmo sem saber por que aquela sulina de ilha !? Borralheira ou cinderela cheirando à maresia ? Já tinha um referencial seria inteligente e ou criativa ? Sempre cheia de dúvidas prosseguia usando tu e não você, cantado ao ritmo das marés baixas estranhava a música do povo que espantosamente negava de pé junto, não cantar. Claro que todos cantavam  de formas diferentes e acabavam se entendo na mesma sinfonia de ritmos vários; quem chegava de fora desafinava a orquestra, mas a partitura se abria e acolhia mais um acorde, naquele milagre da polifonia harmônica.
Caetano, meu irmão, “quando cheguei por aqui eu de nada entendi” mas senti muito. Vontade de mergulhar de cabeça no caos, boquiaberta, encantada pela sabedoria dos mestres autores dos livros que eu lia como se fossem deuses e agora meus professores ao vivo. Surpresa pela criatividade dos sábios ambulantes de rua, coloridos camelôs, cantores improvisados, aos domingos me perdia nas feiras livres e me entupia de pasteis. O brilho de São Paulo me ofuscava nos faróis dos carros e nos letreiros iluminados. Filas intermináveis, ônibus superlotados.
Eu me sentia feliz e liberta na multidão. Seguia procissões, fazia greve por solidariedade sem saber nem por que causa estava defendendo. Eu não era ninguém, mas pertencia como célula àquele povo que fazia história no anonimato. Concursos, bienais, museus, como gente lá eu estava com o nariz metido. Era um sucesso. De fila em fila chegava na faculdade e nos empregos. Fui melhorando de vida, ninguém reclamava mais por eu ser catarinense, se cantava se não cantava, até arriscavam um baiana um carioca. As caras eram fechadas e sofridas. Dei férias ao meu sorriso para não afrontar ninguém com a minha alegria perplexa de sulina deslumbrada.
São Paulo era um país, mas não exigia passaporte.
A minha vida já era uma obra aberta, lírica perdida no meio da epopéia. Lia muito, andava nos sebos batendo perna e descobrindo relíquias.
Passei a usar Varilux, os olhos da cara ! Participava dos concursos de poesia falada da falecida Editora Escrita que deve ter ressuscitado com outro nome em outro planeta, ganhei alguns prêmios, tinha até platéia. O meu currículo familiar crescia a olhos vistos.
Sim senhor, São Paulo, um teatro e um circo variado, um feitiço e uma tragédia grega. Vivia-se na fantasia porque a realidade era alegórica, fictícia. Só para olhos de artista ? Máscaras para todos os lados e caras desprotegidas, às vezes sangrando ou chorando, muita miséria muita fome.
Um dia resolvi voltar para minha ilha praquela paisagem de sonho praquele ar purinho de vento sul mergulhada em céu, mar, morros e montes. Saudades das minhas piscinas vivas, salgadas, cheias de ondas e espumas; dos meus cômoros de areia branquinhos.  Mas logo a bandeirante vacinada retornou à luta e voltou ao burburinho do movimento da sua sampa capital do coração e nunca mais a esqueceu...


São Paulo, 19 de setembro de 1983

Marlene Perez - Lene

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