III
Sou filha de coração de São Paulo: matéria prima, ritmo
poético da minha vida, embalo contínuo.
Quando entrei na USP meu auto-conceito subiu. Em plena descoberta de
quem eu podia ser, eu era mesmo sem saber por que aquela sulina de ilha !?
Borralheira ou cinderela cheirando à maresia ? Já tinha um referencial seria
inteligente e ou criativa ? Sempre cheia de dúvidas prosseguia usando tu e não
você, cantado ao ritmo das marés baixas estranhava a música do povo que
espantosamente negava de pé junto, não cantar. Claro que todos cantavam de formas diferentes e acabavam se entendo na
mesma sinfonia de ritmos vários; quem chegava de fora desafinava a orquestra,
mas a partitura se abria e acolhia mais um acorde, naquele milagre da
polifonia harmônica.
Caetano, meu irmão, “quando cheguei por aqui eu de nada
entendi” mas senti muito. Vontade de mergulhar de cabeça no caos, boquiaberta,
encantada pela sabedoria dos mestres autores dos livros que eu lia como se
fossem deuses e agora meus professores ao vivo. Surpresa pela criatividade dos
sábios ambulantes de rua, coloridos camelôs, cantores improvisados, aos
domingos me perdia nas feiras livres e me entupia de pasteis. O brilho de São
Paulo me ofuscava nos faróis dos carros e nos letreiros iluminados. Filas
intermináveis, ônibus superlotados.
Eu
me sentia feliz e liberta na multidão. Seguia procissões, fazia greve por
solidariedade sem saber nem por que causa estava defendendo. Eu não era
ninguém, mas pertencia como célula àquele povo que fazia história no anonimato.
Concursos, bienais, museus, como gente lá eu estava com o nariz metido. Era um
sucesso. De fila em fila chegava na faculdade e nos empregos. Fui melhorando de
vida, ninguém reclamava mais por eu ser catarinense, se cantava se não cantava, até arriscavam um baiana um carioca. As caras eram fechadas e sofridas. Dei
férias ao meu sorriso para não afrontar ninguém com a minha alegria perplexa de
sulina deslumbrada.
São
Paulo era um país, mas não exigia passaporte.
A
minha vida já era uma obra aberta, lírica perdida no meio da epopéia. Lia
muito, andava nos sebos batendo perna e descobrindo relíquias.
Passei
a usar Varilux, os olhos da cara ! Participava dos concursos de poesia falada
da falecida Editora Escrita que deve ter ressuscitado com outro nome em outro
planeta, ganhei alguns prêmios, tinha até platéia. O meu currículo familiar
crescia a olhos vistos.
Sim
senhor, São Paulo, um teatro e um circo variado, um feitiço e uma tragédia
grega. Vivia-se na fantasia porque a realidade era alegórica, fictícia. Só para
olhos de artista ? Máscaras para todos os lados e caras desprotegidas, às vezes
sangrando ou chorando, muita miséria muita fome.
Um
dia resolvi voltar para minha ilha praquela paisagem de sonho praquele ar
purinho de vento sul mergulhada em céu, mar, morros e montes. Saudades das
minhas piscinas vivas, salgadas, cheias de ondas e espumas; dos meus cômoros de
areia branquinhos. Mas
logo a bandeirante vacinada retornou à luta e voltou ao burburinho do movimento
da sua sampa capital do coração e nunca mais a esqueceu...
Marlene Perez - Lene
São Paulo, 19 de setembro de 1983
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