sábado, 15 de novembro de 2014

1 - Cartas em Família – 21/11/1989



I - André Luiz 


Querido filho:
Há muito tempo não te escrevo. Converso contigo por telefone. Sempre gostei de escrever, mas o faço quando estou com vontade. Escrever, qualquer que seja o gênero, para mim é um ato criativo: profundo, espontâneo, verdadeiro. Um ato de liberdade dentro dos limites da nossa própria, sobre os quais não se pode definir, precisar até onde vão, são desconhecidos e portanto também livres, mas existem. Quando se trata de carta, o destinatário é muito importante, ele regula, segura ou abre as fronteiras da nossa imaginação emotiva, determina a mensagem, um pouco o estilo, o limite se torna mais real e fácil de controlar, com exceção de cartas utilitárias, factuais. Eu só escrevo para pessoas parecidas comigo e mesmo assim corro o risco de não agradar, o que merece uma tese. Como pensamos conhecer as pessoas e o que sentem é mais fruto da nossa ótica, nossa identificação, projeção da nossa história humana, psicológica e social; nossos valores enfim, o que é muito válido porque não dispomos de outros recursos, as suposições e os sofismas subjetivistas são as bases de todas as máximas e axiomas do progresso da humanidade. Alguns mais frágeis perdem seu reinado, quando se descobre que eram simples alinhavos de outros axiomas mais convincentes. Em filosofia ou ciências sociais não existem verdades absolutas paradas no tempo. Tudo é questionável e dinâmico. Religião e arte são matérias mais complicadas apesar de sofrerem também a influência histórica dos tempos. O sofrimento, o ambiente e a solidão liberam no indivíduo sensível a arte em estado latente; mas não acredito que o fenômeno se explique assim de forma tão simples. Ser ou estar feliz ou infeliz é um mistério fugaz. Eu, por exemplo, sou muito feliz quando consigo dar uma gargalhada, em estado sóbrio, de balançar a minha e todas as estruturas; as causas não importam. Eu não conheço outra arma, saída, remédio, divertimento melhor do que uma autêntica gargalhada; derruba, apaga, responde a todos os males físicos, sociais, psíquicos e espirituais. Todos possuem este recurso, arte, instrumento, melodia: esta descarga que nos faz vibrar até as entranhas. O pensamento é liberdade? Mas que liberdade é esta que para ser considerada como tal não pode se manifestar? É segredo? A gargalhada é a manifestação até dos pensamentos que não podem ser ditos e escritos. Conforme a hora e o lugar você pode prolongá-la à vontade e com o tempo se vai rindo em qualquer lugar adaptando-a nas variáveis, desde o risinho até a própria, mesmo sob controle denso ainda é válida. Eu a considero a marca registrada do indivíduo. Outro dia quando a Zoê, minha irmã, me disse pelo telefone que o comentário na casa da Dona Alicinha, a senhora tua avó, tinha sido grande com críticas, lamentações, pesares e muita tristeza porque me viram de tênis, no mercado público, com uma cesta vendendo alface, eu soltei uma gargalhada tão grande, gostosa, maravilhosa, poderosa e tão infinita que até as paredes da casinha de madeira pareciam querer explodir comigo. As lágrimas escorriam no limiar do trágico. Que alívio! Em um dos intervalos ouvi a Zoê dizer que eu estava rindo de coisa grave, descendo na escala social, ficando mais louca e quem tinha visto era a tia Lindomar com o Dr. Luiz, seu primogênito e nosso primo que afinal era Secretário Municipal da Saúde e que a tia Lindomar teve vontade de se chegar e me comprar logo todo alface para seu eterno regime (o eterno é meu) a fim de me livrar daquele vexame, mas não quis dar as caras, eu podia me envergonhar, etc e tal. Ai é que eu ria, mentalmente ia criando o cenário da sátira. O vô Vieira baixou a cabeça e quase chorou dizendo: até onde pôde chegar aquela filha! O que eu podia dizer, a não ser rir? Mas que bela peça social eu não criaria! Conforme o caso a gargalhada derruba todo e qualquer argumento. É a única resposta vitoriosa para o caos do absurdo, dos valores ingênuos, provincianos, arcaicos e rançosos da cultura. De volta ao riso eu me sentia completamente feliz. Afinal cultura é cultura tanto a social quanto a da terra, ambas são um luxo. 


Puxa vida se eu pudesse ainda escrever muito mais sobre isso, eu o faria, mas terra é terra, por demais magnética é arte prioritária, atrai
gravidade grávida perene
parto contínuo e variável
gritos de vida no vazio.
 A maior figura sinestésica você ouve com os olhos e o tato, uma procissão,
um desfile, uma cidade sensível e civilizada
extremamente bela
e graças a Deus de natureza desumana
apesar do homem lhe pertencer
por isso não posso correr o risco de humanizar muito este pedacinho de terra que vou batizar como: O Vale da boa Sorte ou Sítio do Silêncio! O que achas? 



De volta ainda à gargalhada, minha grande obra publicada, só na página de rosto aberta, a única certeza de que existo e vivo, os acordes do meu espírito em concerto de piano na fase do clímax. Consequência e não causa é simplesmente uma gargalhada na verdade. E quem vai discutir ou censurar? Me proibir de rir? Água na fervura. O caso venda do alface se encerrou antes da safra e eu continuo rindo até hoje. Imagines tu se me tivessem visto nas filas dos bancos oferecendo verduras!? Consegui fregueses certos pelo telefone. Agora ando matutando outras formas de venda para próxima safra. O sítio é uma fonte de dinheiro e poesia, mas uma loucura no meu caso. Tenho pouco tempo de curti-lo, vivê-lo, muita idade, pouco dinheiro. Tudo que arrecado invisto na casa, daí a dificuldade de cultivar a terra, produzir e lucrar. Caseiro é um mito, são como professores, quase todos sem vocação. Como já te disse, eu me sinto um pouco Juscelino e Policarpo Quaresma, construindo Brasília, por isso não posso abrir mão do “Palácio da Alvorada”, pena não ter rampa na frente, só nos fundos. Ando pensando numa estátua enfatizando a cara numa grande gargalhada, bastariam só a boca e os olhos. Se eu sair da casinha açoriana, o meu centrinho místico, quem sabe será o meu museu em vida, o que achas? Lá por Sampa andei falando do meu túmulo dramático a ser construído no “palácio” ou no topo do morro. No momento estou preocupada em comprar os vidros (teu avô que colocou a pedra fundamental na minha Brasília comparando a casa a um palácio com ironia), pagar o eletricista, fazer a instalação da água, fazer algumas aberturas, fazer a garagem, fazer algumas fossas, pintar, colocar carpete nos quartos, montar os armários embutidos e terminar a terraplanagem histórica com um muro de arrimo com pedras tiradas do morro, depois as calhas e tudo isso no grito, sem dinheiro e mestres para orientar na “Pós”. Agora colocando os pés no chão lembrei do teu aniversário no dia 16 deste. Correu tudo bem na festinha? Eu tenho muito orgulho de ti como filho, que os teus caminhos se abram cada vez mais; que haja mudanças na tua vida sempre para melhor; que não percas nunca a fé nem a vontade de viver; que não pares de sonhar a cada realização; que enfrentes todos os obstáculos com serenidade e segurança; que sintas prazer em acordar com chuva ou com sol; que na tua rotina pressintas a esperança de uma boa notícia; te afastes dos vícios que te possam agredir e fraquejar sob a forma de falsas ilusões ou fugas momentâneas; que cultives os bons pensamentos, os bons amigos, o senso de humor, alegria e, nunca desistas de encontrar um grande amor. E se não for demais pedir, que continues sempre a me aceitar, admirar e a me defender como eu sou com histórico atualizado; que continues ainda como um grande homem forte, sensível e inteligente, de cabeça, braços e coração abertos para me amar como um bom amigo e verdadeiro filho. São palavras simples e muito exploradas, palavras de uma mãe, por isso sempre bem-vindas por que sinceras. 

Beijos 

Mãe Marlene

Obs.: Esta carta foi escrita em 21/11/89, em Sambaqui, Florianópolis, SC., só publicada 
hoje, dia 15/11/14 – fato histórico: Proclamação da República, véspera do aniversário de André Luiz Vieira Perez, meu primogênito que completará 58 anos de vida amanhã, a quem envio votos de longa vida e de muitas felicidades. 



MPerez/Rio das Ostras

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