quinta-feira, 1 de maio de 2014


Diário de Classe
(Homenagem ao Dia do trabalho)

          Ana cabisbaixa e manca se dirigia para o ponto de ônibus carregada de livros, pastas, apostilas. Mais um dia. Como sempre fazia o balanço da sua vida, lembrava-se da época em que os filhos eram pequenos e que torcia para crescerem. Mais um dia...O ônibus chegou lotado. Conseguiu entrar tropeçando. Nem sombra de lugar. Será que teria alguma coisa na geladeira para comer quando chegasse em casa?! Laranja talvez, era a salvação. Os passageiros, todos mártires e assustadores escravos de salários, sem dormirem há séculos quem sabe...salvos de avalanches intermitentes. Cantarolou mentalmente a Travessia de Milton Nascimento “Meu caminho é de pedra como posso sonhar”. Desceu no ponto errado e dirigiu-se às pressas para casa olhando pra trás e em volta. Subiu o morrinho da sua rua. Puxa vida, havia sempre um morro pra escalar desde que se conhecia por gente. Rua escura. Abriu o portão e fechou rápido. Suspirou. Quando entrou no quarto livre da carga, atirou-se na cama. Precisava tomar um banho. Não, amanhã cedo. Ligou a TV. Não tinha mais nada. Era muito tarde. Que fome, meu Deus! Levantou-se cambaleando e voltou com a bacia de inox cheia de laranja e uma faquinha. Odiava descascar laranja. Olhou pro pôster de Elis Regina: é pau, é pedra...Amanhã precisava enviar dinheiro para o Henrique. O especial Banespa já estava no osso. Pagar a prestação da casa, o telefone. A sexta ainda estava longe. Sábado limpar a casa, corrigir prova e domingo ir à feira, cozinhar pra semana e lavar roupa. Comeu as laranjas com bagaço e tudo e tentou dormir. Bem que podia terminar aquele poema. Qual? “Uma questão de poética” pro concurso de poesia falada. Perdeu o sono. A caneta! A caneta? A eterna caneta, bastou querer some. – Achei! Pegou do caderno ensebado e começou a rascunhar. Estava muito bom, mas longo. Será que psicografava? Seu pai dizia sempre: essa menina tem guia! Não era cega. A colega espírita Jandira sempre insinuava quando lhe mostrava algum escrito: isto deve ser do Garcia Lorca, do Cruz e Souza e até do Fernando Pessoa, conforme o texto. Será? Não, era ela mesma. Imagine se encarnava todo aquele batalhão de gênios. Naturalmente deviam falar que aqueles poetas também psicografavam. É duro ser de carne e osso!
          Entrou de madrugada e saiu de madrugada. Minha nossa! Será que valia a pena. Todo aquele sacrifício?! Tinha chegado atrasada e levara uma bolinha vermelha na 1a aula (depender de ônibus não era fácil), mas foi dar a aula com prazer porque os alunos a esperavam ansiosos, adultos e conscientes, afinal era uma famosa Escola Técnica, o Cei Prof. Camargo Aranha, lá no Brás. O pior era agüentar as brigas do marido lhe cobrando horário, almoço, janta, dignidade de mulher casada. Quase 15 anos em S.P. e ainda não conhecia nem o Municipal. Ainda bem que estava no fim de ano! Herinque ia se formar,sentiu um calafrio. O dinheiro? Não enviei o dinheiro!!? Iria arranjar um empréstimo pela Prefeitura lá no Carandiru! Perigoso. Mataria as aulas da tarde. Mas seria a glória, tinha conseguido, ia formar o filho do meio, o primeiro em medicina. Edgar já estava formado em engenharia e Alcides, o mais moço, também fazia medicina. Não teria tempo nem dinheiro para fazer um vestido novo, mas iria com o da missa, aquele nosso velho conhecido, o caipira estampado da missa que já usara na formatura do Edgar. Seria uma vergonha, mas iria de qualquer jeito. O importante seria sua presença. Conquista dela e do filho. Esta história merece um acabamento, prometo voltar em 2015 com o segundo capítulo desta novela de uma operária brasileira das letras. 
MPerez - texto criado na década de 70 e publicado hoje em 1° de maio de 2014 - Rio das Ostras - RJ
Comentário: O pior é que não mudou nada...






Um comentário:

  1. Cotidiano, luta... Impossível não refletir sobre nossas vidas num texto assim. No ônibus lotado as histórias de cada pessoas se cruzam, se esbarram e se unem.
    Curto muito seus texto MPerez. Bjs

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