O
Cúmulo
(Romance inacabado - 31-12-07)
APRESENTAÇÃO
Não
se trata de um romance de tese nem de uma história linear com começo, meio e
fim, pronta e acabada e sim de uma esfera codificada em gráficos lingüísticos. As
perspectivas vão se revelando em sessões por argumentos ao passar pelo eixo giratório
simbolizado por um palco, tudo subordinado à imaginação do leitor, só limitada
pela abertura do texto em suas significações finitas.
Em
quase todas as afirmações há sim uma tese a defender, tudo é discutível neste
palco que busca provocações, tertúlias e não vitórias de pódios, glórias
regadas a champagne, seguidas de troféus e inércia decadente de fim de festa,
do que se foge como o diabo da cruz.
Não
há grande preocupação em marcar o tempo cronológico no decorrer da trama sem
muito enredo e poucos fatos em palavreado crítico-filosófico ou descritivo de
espaço e época.
Deixei
transparecer timidamente a filosofia sócio-política desta história para
facilitar a decodificação dos meandros narrativos e dos perfis das personagens
em épocas diferentes, no início e final do séc. XX e início do XXI. Claro, tudo
numa esfera despretensiosa e abstrata, do faz de conta. Materializando-se,
lembra de perto um carro alegórico entreaberto que se detém e se expõe ao
passar pelos juízes para julgamento e avaliação e se afasta sem esperar o
resultado.
O foco narrativo de natureza inconsciente,
aparentemente sem pé nem cabeça, contém más intenções de se transfigurar num
polvo ou numa hidra de boa índole na pele da personagem central, que na verdade
é a maior vítima na figura de Tessa que se transmuta em outras personagens. Na
vazão de seus sonhos e desejos e na cura de seus traumas pela drenagem das
tranqueiras malignas e degenerativas a pressionar seu cérebro, ocupando-lhe
todo espaço útil, se embasa, se justifica e se realiza na criação de outros
tipos de personalidades complexas, os mais próximos possíveis do protótipo
gente comum; embora quase extravagantes, não chegam a ser títeres.
Assim,
o inconsciente precisa pôr-se à escuta para dar o que falar e contar a história
como uma boa tia, descarregando-se dos entraves.
Sem
planejamento de encomenda, resolvi deixar por conta das múltiplas visões
esféricas, quadradas ou deformadas, de ponta cabeça ou de gargalo pro ar,
qualquer ângulo do meu inconsciente narrador e personagem, vigiado de perto
pelo equilíbrio consciente todo certinho e, não sei se consegui ou vou
conseguir após a fruição.
Aprendi
e ouvi que todo autor após a obra fica saturado e se torna consigo um crítico
severo e exigente cheio de venenos, com enjôo de mulher grávida ou com trauma
de parto.
Nenhuma obra se acaba, quase sempre é mote
para outra mais completa em busca de perfeição, o enfoque pode mudar o objeto,
ser completamente oposto, mas os estilemas permanecem e o vício também. A
ansiedade de prosseguir e criar retirando da vida os cortes necessários para
formar o mais belo e difícil quebra cabeça é contínua. O melhor trabalho não é
o último e sim o que está em fase de construção, que n deixa de ser o prosseguimento
de um só desde o primeiro.
A decepção, às vezes, é perceber que não
quebrou cabeça nenhuma, só a sua que entregou a pancadas para descobrir
novidade nenhuma, evidente nos olhares gritantes: contaram só pra você?
Os
autores morrem, mas suas obras se eternizam num crescente quando suportam
muitas leituras, críticas e avaliações e no círculo em movimento, outros
autores nascem. O sucesso, claro, está atrelado ao tempo e à moda, à história.
Um grande sucesso de ontem, hoje é um texto ultrapassado e considerado plágio
ou psicografia do famoso autor espoliado que nem pode descansar em paz e isto
não é nenhuma descoberta, todos já sabem. Hoje em dia é um recurso de consumo
muito explorado. Muitos autores famosos que continuam consagrados como
clássicos, hoje seriam anônimos bastardos.
Durante
a atividade de criação há um frenesi, quase desespero por gozo contínuo e na
abstinência, o vazio é a fase do porre seco. As células criativas devem ser
como as alcoólicas.
A pretensão de conter neste trabalho um leque
de significações que se manifestem conforme a urgência, a título de desabafo
oscilante e não fixo, mantendo a coerência interna espontânea dentro de sua
incrível lógica cartesiana e utópica como sinais evidentes do séc.XXI voltado
aos meandros da física quântica inconscientemente, não é nenhum exagero, é
coragem mesmo irresponsável e existencial.
Provavelmente
deve haver preocupações megalomaníacas de ir além do que já existe e do que se
pode e se for será a título de ficção premunitiva, confirmando as múltiplas ou
más intenções. Se atingirmos a um duplo sentido por visões emancipadas e
anônimas já nos daremos por satisfeitos como bons principiantes.
A
personagem principal Tessa é antes de tudo a roupagem do seu inconsciente,
verdadeiro protagonista narrador; no mais, uma simples e complexa vivente. Longe
de ser um fantasma, apresenta-se ora humana, ora espiritualizada com poderes
paranormais quando, por exemplo, seus desejos se reencarnam em personagens de
peso importante como a Educadora Eli Áurea e outras.
Quando
foge da órbita considerada arbitrariamente normal e registra seus episódios de
vida valendo-se da passagem do inconsciente para o consciente a fim de
desvendar o presente no passado, torna-se uma grande pensante intuitiva e com
premunições, uma parapsicóloga nata, uma mística.
Na
vida, todos já utilizam conscientemente o inconsciente e o fazem por instinto
natural sem nem perceber o uso constante do acervo diacrônico acumulado no correr
dos episódios da vida sincrônica; outros, em transgressões permanentes, vivem
inconscientemente, considerados loucos ou não, conforme o caso.
Este
fenômeno em circuitos rápidos como insigts, continua vigente acompanhando a
nossa narrativa, respeitando as descobertas do ato criativo liberto dentro das
restrições óbvias. E não pretende focalizar outras vidas neste ou em outros
planetas de forma determinista. As insinuações intermitentes de vida e morte e
os arremedos sobrenaturais quase didáticos justificam o início capenga do
processo narrativo para engatilhar uma andança mais desvencilhada do
corriqueiro melodramático e fantástico já tão nosso conhecido no âmbito dos
fenômenos sobrenaturais dos folhetins e de outros enfoques de teses religiosas.
Há uma ânsia de explicar o que não se sabe
ainda no caminho cheio de promessas. Os mais longos transes objetivando
descarregar os resíduos dos traumas da personagem principal com poderes de
regressão auto-hipnótica pela meditação seguida de sono rem e despertar
tranqüilo é a idéia chave e primeira da matéria especial.
Forma
e conteúdo concretizam este propósito, mas pode se desvirtuar com as armadilhas
inesperadas do caminho em processo de abertura sem mapa nem fórmulas para
encontrar saídas de emergência, não temos certeza se acabamos dando um jeitinho
sem ponto nem última palavra final no singular pluralizado.
As
demais personagens e figurantes gravitam no contexto em sonhos e desejos que se
materializam em ícones, quase heterônimos, conforme a necessidade psíquica mais
intensa e crucial para lances principais de andamento da evolução da
protagonista e da história. O fenômeno quase exaustivamente explorado não se
processa através de um especialista como personagem mediadora, seja psiquiatra,
psicólogo, medium ou místico esotérico. É autônomo por que inconsciente e sustentável
em duas coordenadas; uma voltada para a ciência; outra, para a teologia e ambas
tratadas no âmbito da filosofia e da política, sem enfoques dirigidos a um só
setor da vida, seja espiritual ou social.
Não
há defesa de verdades absolutas em
posturas laterais dialéticas para uma fusão vitoriosa ou ganho de causa
para só uma das linhas. Caso contrário, a nossa pretensão despojada não
atingiria sequer uma ambivalência para um tímido esboço de obra de arte,
engatinhando num terreno minado.
Introdução
Como
inconsciente da personagem principal, arquivo de todas suas reservas, socorro
fiel de horas amargas, menos atuante nas de felicidade, estou sempre ligado aos
bastidores. Escravo perpétuo pelo destino contraditório do existir só na condição
consciente, hoje assumi num impulso o foco da narração.
Após
cada rodada de estágio sou embalsamado, para períodos de letargia, acertos, jejum;
sono e coma induzidos. Por quem? Não me
é dado saber dos mistérios divinos, resposta tangente para todas as perguntas
sem saídas. Quem sabe por uma múmia num sarcófago de luxo?
No
nosso mundinho inconsciente não se sabe de nada nem mesmo da previsão do tempo
e muito menos do início de outro ciclo de vida no mesmo ou em outros planetas,
mas se finge muito e tantas e tantas vezes que se passa a acreditar como
verdade pelo menos convencional, as nossas alternativas de desvendar os
inverossímeis começo e fim do ser humano tão violentado com a certeza da morte.
Ressuscitar? Em breves sonhos premunitivos tão inconsistentes como desprezíveis,
assistimos à nossa morte, ressurreição, conversamos com pessoas falecidas e nos
comunicamos acordadas até com outras vivas e distantes por telepatia e até
ouvimos das primeiras aquilo de que precisam e geralmente acertamos e das
mortas só o que queremos. O ser busca a paz e o equilíbrio por todos os meios e
aposta na sua verdade.
Talvez
uma energia Alpha nos acione à revelia conforme provações e promessas cumpridas
no correr de milênios. Assertiva que ouvimos dos nossos antepassados e lemos na
bíblia com outra redação em estilo polivalente digno de uma obra de arte.
Há
outras defesas semelhantes sobre o mesmo assunto embasadas na reencarnação,
pela volta à terra em várias vidas que atrasam o tempo para alcançar o bem
maior de não viver mais entre nós neste mundo profano.
A
Paz no desfrute da calma benfazeja individual daquele descanso na pasmaceira do
paraíso não existe e sim em atividades de ajuda aos mais necessitados. Neste
estágio de luz e altruísmo não há lugar para preguiça egocêntrica do laissez-faire
e sim para o trabalho de ajuda ao próximo encarnado ou desencarnado em qualquer
esfera de qualquer planeta; para atingir o ápice da pirâmide há que se cumprir
estágios em cada grau ainda que se vire gente de carne e osso milhões de vezes
morrendo e renascendo.Esta tese tenta provar a grosso modo que morrer é um
prêmio e a vida um castigo, o que ameniza a angústia do fim inexorável.
Quanto
aos primeiros espíritos ou espíritos novos, as explicações são meio dúbias ou
sic, alguns vêm de uma flor, das profundezas do mar ou da velha história
daquele mistério divino fora do alcance de pobres criaturas mortais e pecadoras
deste mundo de expiação.
Não
acreditam no dogma de Adão e Eva e nem reverenciam seus mortos com velas,
flores ou visitas aos cemitérios porque lhes atrasam as almas, caso ainda
estejam lá; os mais evoluídos sobem direto pro espaço para serem pacientes ou
agentes. O colapso atualmente, devido à corrupção em massa deve estar grande
com o excesso de pacientes, pior do que no SUS.
A
saída, pela lógica, deve ser o cemitério mesmo, caso encontrem uma vaguinha,
alma de bandido não deve possuir asas. Se Deus é justo: transgressor sem causas
nobres, de asinhas podadas, deve ficar rastejando, assaltando cadáveres sem
sucesso e torcendo pelo seu chão em campanhas fúnebres dos Sem Cova,
reconhecidos pela sigla ASCO até terem condições e paciência de seguir a fila
dos semi-iluminados à espera de asas.
Sabemos
que loguinho, cemitério não vai ser só um espaço competitivo, requisitado pelos
vivos donos das construtoras multinacionais, terá entrado em falência arcaica
como pátria, família, igreja, saúde e escola, naquele neoexistencialismo que
vai fazer até Sartre ressuscitar e subir sem paredes finalmente numa tirada
fenomenal de Superman ou Vampiro. A cremação será um ato simples desprovida de
muitos aparatos e simbologia, praticada no âmbito doméstico no quintal, na
varanda ou na laje.
A
bíblia atravessa milênios em pé de guerra, sempre pronta para novas interpretações
com seguidores fanáticos e rebeldes adversários em nome de deuses antagonistas,
defendidos por súditos vingadores. Não há nenhum exemplo de experiência
confiável em depoimento até agora e sim muitas esperanças e alguns casos
instigantes além dos fenômenos da ciência.
Jesus,
por sua magnitude eterna é um milagre à parte em convenção universal. O
cristianismo desde a idade média se firmou no catolicismo oficial e político.
Há outros iluminados, mas não posso entrar em detalhamento para não fugir ao
propósito deste trabalho.
Pretende-se
aqui levar à meia luz, algumas relíquias, muito lixo e trazer à tona os
emaranhados de anacrônicos labirintos incrivelmente atualizados. Sem planos,
vamos procurá-los no caminho fechado com pretensões de enfrentamento e
abertura. Deixarei à margem muita linha se perdendo ou se recuperando no
pântano para atalhos, indispensáveis por ora. Opções se impõem.
Extrair
os ateromas da matéria bruta e revelar os tesouros mofados pela tirania
reinante do superego contra a subversão da linguagem, despachando a burocracia
arcaica diretamente como sub ao chefão consciente, é um desafio temerário. Reciclar,
embora necessário, tornou-se um ato de coragem contra o preconceito.
Assumir várias programações em vários planos
de contexto no tempo e no discurso a partir de reservas inconscientes é uma
grande aventura ousada e deliciosa terapia, uma paixão positiva no risco da
linha de cada horizonte.
Pascal
e milhões já disseram e todos os dias temos que repetir que é preciso jogar. O
que na verdade não é um jogo? A primeira
intenção é assimilar-se ao emaranhado para encontrar novas saídas. Apesar de
sermos únicos, raros achados, vivemos insatisfeitos, cercados como num
holocausto. Ou não? É bom conhecer um referencial de felicidade, não só no seu
oposto, mas em outras formas sutis e aparentemente invisíveis; algumas, claras
e simples, aonde se escondem as maiores dificuldades. O que é simples? Se avaliarmos
o todo, aceitaremos a mudança de alguns conceitos. Isto é logística a merecer
atenção.
Em
princípio vamos embaralhar muito e não esclarecer nada. O leitor vai escolher
as cartas, submetê-las ao seu foco de luz disponível e proceder à leitura.
I CAP - O CATALISADOR E A PRAÇA
Por
que tinha resolvido me abrir, entrar como um vulcão em atividade? É provável
ter passado por uma intervenção cerebral mediúnica não invasiva. Será que houve
platéia e eu estava adormecido? Com direito a éter, perfume de rosas e fundo
musical da Ave Maria? De autor escolhido por ordem de chegada com senha? Senti todas
as auras geniais se manifestando na hora D com um pupurri de aves do outro
mundo! Ou estava tendo uma alucinação? Schubert teria conspirado? Por que não
me saía dos ouvidos seus únicos acordes? Por que só tive espaço para gravá-lo?
Naturalmente era mais um dos meus traumas agradabilíssimos, uma benção. Mas,
afinal o que estava havendo?
– Um inconsciente propunha-se a falar,
descarregar seus traumas, contar a história, após ficar calado durante muitos anos,
declarava a mídia. Como seria o meu aparelho, o meu corpo, o meu sexo?
Apresento-me como mulher, mas continuo homem no inconsciente e pronto. Aliás,
vamos começar por cima e internamente: o cérebro, coração, pulmões, estômago, intestinos,
baço, fígado e rins são todos masculinos. Os demais femininos não contam. E a
hipófise? E todas as glândulas? Importantíssimas. E a bexiga e a..., sabe de
uma coisa, o machismo desgraçado impera. E depois o homem é masculino como o
seu inconsciente e só existe a partir deste e vice versa. E a mulher também é
inconsciente? A mulher tem inconsciente, mas não o é. Em quê? Esclareço que
para evitar comparação entre sexos, cometendo alguma injustiça, me refiro, na
verdade, ao ser humano.
Estava
perdido, já não se entendia mais, só de uma coisa tinha certeza, ou seja, da
consciência de seu corpo feminino. Alguém já se perguntou sobre quem deu nome aos
bois? A história, o povo, a cultura, a vida? Três contra um? A alma fica
perdida no meio de Deus e do Espírito Santo, rodeados de Anjos. Difícil evitar
a rima, são os cânticos. Será que condenaram a rima por ser feminina? A prosa não
pode ter rima para não virar verso? Nossos
ouvidos iam cansar do embalo? Não há preconceitos lingüísticos envolvendo o
sexo. Será? O verso pode rimar naturalmente.
Melhor parar por aqui. O importante é ser
masculino ou feminino quando convém e de preferência invisível, ser poderoso.
De repente, o meu antônimo que estava bem comportado como um macho de classe, sem
nenhuma matéria declara guerra naquela manchete! E claro, me trata como seu
inimigo. És o mal, o mal inconsciente, me grita. Abre fogo, as narinas, mas não
passa sem mim e eu dele preciso para me traduzir. Não vou mudar. Pô! Vou
publicar os meus poemas, são demais! Calma, não pensa alto, podem ouvir, auto-elogio
dá processo. E cuidado com a inveja, com o plágio! Estás louco? Tudo bem,
aceito ser o louco de pedra, um túmulo impassível.
Repórteres
de prontidão se misturavam munidos de blocos, canetas, gravadores e microfones
a professores, estudantes, doutores e doutorandos de Psiquiatria, psicólogos e
neurologistas, místicos, religiosos, maçons, esotéricos e a muitos curiosos que
enchiam a Praça dos Relâmpagos. O púlpito da retreta ficou à disposição dos
oradores.
A banda sem maestro tocava baixinho um mix de
cantigas de roda e de vez enquanto um rock, um forró e um pagode disfarçados.
Euzinho,
o tão intrigante convidado, só observava, com disfarce de cigana, já tinha
começado a história; nos intervalos, lia algumas mãos sujas e ganhava uns
trocados, alheio a qualquer reação.
Os
adeptos da parapsicologia já se chegavam com alguns padres entre pedófilos
anônimos e comentavam que o fenômeno devia ser fruto apenas de uma sessão de
hipnose ecumênica, tipo reunião de senadores e deputados de todos os partidos
com o Presidente ou do Papa nos concílios, a diferença era mínima. A rara
personagem devia ter sido exorcizada pelo pastor para livrá-la do demônio e
vinha agora arrependida confessar seus crimes, cochichava o líder do grupo
evangélico.
Leitor,
fica quieto, não dá palpites, pega na mão do teu Deus e vai.
E
a entrevista em retalhos se divulgou na imprensa em várias versões até como
despacho de terreiro. O fato foi logo aceito nos meios sociais e místicos da
elite transcendental; bem diferente, é lógico, se comparado a uma crise de
esquizofrenia. Deus nos livre, estigma psicótico, radioativo ou aidético. Sejamos
realistas: Kafka chegou primeiro com Metamorfose,
bestseller consagrado, rendendo até hoje PhD pra muitos doutorzinhos da mula
russa, como dizia o inconsciente do meu avô, o Nicolas.
II
CAP- O INCONSCIENTE EM
ESTADO CRÍTICO DE PARANÓIA
Preferia
terminar o capítulo anterior bem naturalmente, mas para não ferir a sinfonia
melódica da língua, cometendo mais uma vez um crime inafiançável contra a
prosódia musical, fujo do eco como primeira pessoa que confessa, se entrega,
recai na aliteração imaginária e até assume a terceira no seu estado
inconsciente, com muito orgulho e lucidez. Preciso evitar também cacuetes
lingüísticos, né? Naturalmente. Não pensem, no entanto, que me livrei dos
vícios; rima e pinga se confundem nos botecos da esquina, foi daí que num
repente nasceram os desafios. E depois, vamos e venhamos, há assuntos que nos
levam ao ritmo poético, deslizam.
Concisão,
propriedade e eufonia, deviam ser qualidades básicas do estilo de um
inconsciente que se prezasse, mas eu me perco na densidade empedernida do
conteúdo, quando há um terremoto de emoções num abalo císmico. Falo demais
mesmo sem cotovelos.
As
entrelinhas também devem cooperar, suportando com paciência várias leituras,
sejam de visionário diletante, crítico, socialista, teólogo, cientista, do
bispo, comuna, nazista, americano do norte e mulçumano. Difícil é saber se as
minhas crias vão se abrir ou se fechar diante da finitude de uma visão com
pretensões infinitas de análise.
Para
avaliar? Palpite de inimigo de longa
data com alto grau de miopia ou visão X9, admirador contumaz no anonimato que
cobiça os meus talentos como a raposa as uvas, será bem aceito.
Também
o daquela professora que se negava a me dar uma força com desculpas de não
poder assumir muita responsabilidade é bem-vindo. Público e notório que
professor sem vocação, de qualquer época, não suporta sombra de aluno,
principalmente dos mais dotados que sofrem muito. Como sabemos, há ensino
público especial só para os menos capazes, os retardados.
Ah,
lembrei de uma outra, um pouco pior, de estórias, que se dizia uma das
precursoras do modernismo em Flor de Lis, com características de folclore
árcade. Simpatizante do partido comunista ilegal no séc.XX, décadas de 40 a 60, como todos os
artistas, professores, estudantes assim como eu e operários, fingia não me
conhecer. Tinha um sonho para melhorar o seu currículo e ficar famosa: passar
pelo hospício e ser exilada, até hoje não sei qual das opções conseguiu
realizar mais tarde durante a revolução de 64. Submeto-me empenhada à sua
crítica.
Daquela
época só lamento os meus livros que me foram arrancados como pragas, por
exemplo, a obra-prima Guerra e Paz de Tolstoi até Subterrâneos da Liberdade de Graciliano
Ramos.
Alguns
me ignoravam com arrogância, não me encaravam nos olhos. Difícil sustentar o
olhar de um recôndito inconsciente e penetrá-lo fundo com um raio de potência
única, fazê-lo paralisar para ser extraído, abrindo-se para o flash com um
grito e um sorriso de um parto normal.
Os
avessos à inteligência emocional, ao abstrato e à suprarealidade, possuem tipos
de comportamentos, que revelam quase sempre pertencer a uma casta de arrogantes
e reacionários, atolados até o pescoço no ranço de províncias suburbanas e
burguesas, mesmo que vivam em grandes capitais e viagem pelo mundo. Adoram ser
líderes de pobre, fazer caridades nas favelas, denominando-se espiritualistas.
Aos
puritanos da norma culta, uma opinião de cátedra da vida: texto sem melodia não
dá ibope em país tropical, tem que ter embalo com muita rede e um sombreado no
verão, uma nesguinha de sol muito esperta no inverno como nas telas de Degas e
filmes de Ingmar Bergman e principalmente de todos os expressionistas
impressionados. Se conhecerem exemplos brasileiros, por favor, completem que eu
agradeço, já que não consigo lembrar de nenhum caso sério. O quê? Por que
estudei no Brasil? País sem memória? Será o meu repertório doentio e tacanho? O
escurinho do cinema, assombrado pelo Lanterninha, falsa réplica do bandido da
luz vermelha, nem sempre é aconselhável como modelo de inspiração.
Eu
amo e abuso do meu estado inconsciente esfumaçado, pleno de nevoeiros, serração
e neblina, onde tudo se esclarece nos meandros e nas cavernas sem cegar
ninguém, é o baú, o caixa forte, o cofre cheio de paranhos e tesouros da
legítima pirataria, a poesia perambulante e implosiva.
O
que seria dos psiquiatras, se todos os inconscientes fossem controladinhos,
equilibrados e translúcidos? Sem eco, sem rima, sem arte, sem loucuras, sem amigos?
Presos apenas ao trabalho e aos dólares como a maioria dos empresários e
banqueiros, tão considerados lúcidos e equilibrados? Neste caso todos seriam
conscientes. E precisariam de análise com a inversão de referenciais para
conceitos de sanidade e loucura? A moda pegaria logo se fosse chique e de bom
tom e não faltariam os clientes certos, hoje isto já é realidade.
Acho um absurdo chamar os loucos de
inconscientes e vice versa, já que este é o tesouro, o acervo, a reserva do
consciente. Não me refiro a doenças neurológicas, síndromes hereditárias e a
outras moléstias. Os novos loucos seriam incuráveis por que conscientes do que
fazem e por isso iriam continuar a fazê-lo com obstinação e aperfeiçoamento
contínuo? Ficariam soltos mesmo com o destino do povo nas mãos? Epidemia social
bem instalada à vista e todos assistindo? A matéria prima para a vacina é muito
difícil, vocês não acham? Vírus de loucura é personalizado, um pra cada, a
nossa é familiar, controlamos fácil; a do vizinho é nova tese a defender no
escuro. Para aplicar em quem a vacina como medida profilática? O quê? Os loucos
presos no hospício seriam as cobaias? O material seria retirado da turma de
fora? Da casta dos políticos esterilizados lá do planalto seria a melhor opção?
Bem complicado.
Se
tudo aqui está confuso me desculpem. Isto me faz lembrar um dos meus sobrinhos,
o Confúcio Nildo, que nunca quis ser professor, militar, político nem padre,
formou-se em medicina como doutor in natura, idealista homeopata,
ortomolecular, acupunturista, fã incondicional da medicina chinesa e de todas
as orientais, simpatizante dos florais de Bach, vegetariano, vulgo Cenourinha, em criança. Nildinho ,
como é conhecido agora, transformou-se num ecologista fanático e vegetariano
roxo, de currículo superlotado com cursos de antroposofia, que custavam à pobre
mãe professora, pelo menos um olho da cara; paranormal, segundo a linha
astrológica do psicólogo Jung e completamente inconsciente.
Com
os pés no chão como pandorga amarrada em estaca, não perde a linha solta que se
enrola à vontade. Grande sucesso! Numerosa clientela! Uma potência universal do
reino divino, levantando os tetraplégicos e ressuscitando até o pessoal de
Goiás e Brasília daquela febre hemorrágica, dor de barriga verde e amarela que
acomete agora, uma vez por mês, as autoridades oficiais da câmara, senado e
governo, sem mais recursos de mensalão, nem de CPMF e com o Cartão Corporativo
na berlinda.
A
vacina contra a loucura será desprezada, deixemos por conta dos placebos; a da
cleptomania de político bandido é mais urgente, quem sabe até uma guerra
biológica no planalto de Brasília ou um novo Hitler alucinado vendo em todos um
judeu e, munido naturalmente do gás metano para limpar a área.
Nildinho
não foi esquecido, saiu do ar caladinho por que não é besta. E adivinhem quem
entra? O Aedes, ele mesmo, em carne sem osso, o último vilão dissecado e
espremido como laranja, enquadrado em várias cláusulas da Constituição e infrator
nº. 1 das medidas provisórias, convocado de emergência para uma nova CPI pela
oposição e governo. Assim, o nosso vilão Aedes Aegypti, entrou na ordem do dia,
em edição extraordinária.
O
Ministro da Saúde com o Sermão do Planalto sobre a vacina, causou inveja ao
Fernandinho Beiramar, com uma lista de contra-indicações gravíssimas. Os psicotrópicos,
entorpecentes, cortisonas, antibióticos, antinflamatórios, anticoncepcionais,
viagra, coquetel pra aids e outras droguinhas perigosas da moda, tornaram-se
inofensivas, alertando com pisca-pisca sobre o número de óbitos pela doença quase
empatado com o das reações à vacina na última pesquisa, mas ainda valendo a pena
levar a espetadinha, considerando o saldinho positivo na balança mesmo
desaferida do IBGE às voltas agora com
as justificativas injustificáveis para os gastos do cartão corporativo; dos males, o menor, é a saideira, meus queridos telespectadores e
boa-noite com o Novo RAID protector,
rápido e de longa duração, nosso querido patrocinador. Com estas palavras o
ministro encerrou o discurso, vendeu seu peixe e levou o cachê.
O
condenado Aedes - primeiro nome da lista moderna para bebês varões,
principalmente entre os papais nordestinos - esquálido, difamado e combatido,
já quase dizimado, pobre mosquito em trajes menores de zebra e esquecido como repente
de roça pra viola, sem defensor público especial para mosquito, com direito
apenas a zunir em audiência: - não tinha
nada a ver com peste nenhuma do planalto. Viera do mato como pau-de-arara
porque o negócio dele era movido à água,
pra chocar sua prole e já existia antes
de Cristo, escondido nas túnicas
únicas dos judeus - Confessava contrito de medo e com os delicados pezinhos
de gueixa em cima da bíblia, ser fissurado sim, por um denguinho, simples
picadinha inocente e romântica através de suas mosquitas adolescentes surdas-mudas
por quem era apaixonado e responsável.
A
verba ia pra bolsa de sangue, safra magra dos mosquitinhos, afinal não gozava
do privilégio da bolsa família, mas tinha o direito de ficar calado, não daria
nem mais um zum porque seria usado contra o seu próprio ouvido.
Aquele
eco torturante de igreja barroca, vazia, cheia de santos nordestinos,
condenando-o à fogueira com o rabo dos olhos, estourava seus tímpanos, pensando
bem seu zunido era uma sinfonia de Chopin. Ia recorrer, sim, (aguardassem) como
espécie em extinção, com a tese de que um denguinho ou uma febrinha amarela
de leve, vez enquanto dá sorte, não faz mal a ninguém, é vacina orgânica
inofensiva e natural sem onerar os cofres públicos da Saúde em estado
deplorável e esperava contar com o Ministro do Meio Ambiente, Vigilância
Sanitária, com os ecologistas, com todo o eleitorado defensor dos animais a nível
nacional e inter e até com a Brigitte
Bardot.
III CAP- A POLÍTICA DOS FALSOS ACADÊMICOS
Chega
de febre, vacina e mosquito, sou alérgico e se me dão licença vou usar um feed
- back para voltar ao PhD. O leitor está lembrado e encaixará no lugar certo. Uma
vez inconsciente, sempre o serei em grau menor durante a hipnose, mas continuo perdendo
o fio da meada e achando mais tarde num insight. Minha função é de carta na
manga.
Tessa
tinha vários PhDs oficiosos, ajudei-a em muitas teses de doutorado com o meu
acervo, outras pessoas assinavam e ficavam habilitadas para lecionar nas novas
Faculdades em proliferação antes e depois do PAC. O salário de Tessa era
irrisório, infelizmente trabalhava para a Educação no ensino fundamental com
problemas muito graves, por não ser justamente aquela levada a sério e as
Tessas existem sim, mas como criaturas em extinção, gralhas e araras azuis.
No
Brasil e em muitos países, quase todos os adultos continuam na primeira
infância, sempre brincando de política, de casinha, de escola e de médico com
ou sem CPMF. Então juntos, defendendo teses, conseguíamos uns trocados extras
que aplicávamos tranqüila e inconscientemente conscientes em parir e dar vida às
nossas crias educando-as na verdade com espírito de crítica. Para isto tínhamos que praticar a mentira com
o anonimato.
Cúmplices
dos futuros doutores titulares de encomendas que sempre aprendiam muita coisa
lendo, digitando o trabalho e se rebolando na representação da defesa com platéia e tudo, aplacávamos a
consciência calados. Sem um bico fechado não se podia continuar professor. As notas variavam de 7 a 10. Quando líamos as teses
publicadas, chorávamos e ríamos daqueles elogios dos professores e paparicos das
editoras nas orelhas dos nossos livros
que enalteciam os mascarados, muito conscientes, esforçados e assíduos, certinhos,
cartesianos, com roupa de grife cheirando a baseado e à naftalina de brechó.
Plágio
em cumplicidade é prisão perpétua, com lesão traumática para os pobres
cúmplices espoliados. Com denúncia, as verdadeiras vítimas são condenadas à eutanásia
pela rejeição letal da sociedade, no mínimo apagadas do mapa.
Tínhamos
consciência da gravidade dos nossos atos sem consciência.
Os
abutres, isentos de qualquer punição, permanecem para sempre na história e
membros, quem duvida, mais tarde, da Academia Brasileira de Letras, com cadeira
cativa, carteirinha, fardão e de entrada, chazinho e biscoitinho de araruta,
ótima goma organic. Depois só lhes resta
seguir a um cortejo como figurantes ou protagonista. Não resistimos a um
exemplo de corpo presente para amenizar indagações curiosas. Vejamos, vale a
pena porque a comédia é verídica e hilariante:
E
o funeral? De arrasar. Aquele caixão! Não há vivente que não queira morrer só
de olhar. Os velhinhos, titulares da Academia, bloco de honra dos porta-bandeiras
do cortejo, pró-suicidas inveterados, amantes tétricos das honras fúnebres,
deixavam-se seduzir facilmente pela torcida do banco de reserva, cômica de doer
dedinhos enrugadinhos, cruzadinhos atrás dos fraques. O Dunga ficaria louco.
A energia vital desfalecida, que se encontrava
leve e solta sentada na grama do cemitério, ria sem plenos pulmões e meditava
eufórico, feliz da morte: se eu soubesse que bater as botas era esta zoeira sem
compromissos, dívida nem dores, tinha praticado a eutanásia, o suicídio.
Armara a barraca em posição de ataque e
gritava parodiando Ney Mato Grosso: menino, eu sou é MACHO, menino eu sou é
MACHO e como ACHO! Finalmente em paz, trocava o óleo aos 82 anos pela primeira
vez para poder seguir a última viagem com o motor abastecido.
O
comentário do discurso ecumênico do Pastor se concentrava na apologia ao
caixão, a mais bela obra de arte e causa honrosa de morrer e ficar na sua ou na
dele até o fundo, dispensando mortalha e elogios, indo como veio.
O
famoso defunto, político graduado que tinha publicado um livro medíocre em
vida, só lido pelos imortais como sonífero e por solidariedade, coberto agora
com dourados em faixas, flores e cal confundindo as bandeiras, tornava-se um
despatriado, um Cristão Novo, um homem universal de muitas galáxias como todo
poeta que se curva à inspiração, levando e deixando apenas os reflexos internos
da sua extensa obra literária que foi pro espaço e por isso devia ser chamada a
partir dali, de obra planetária; fazendo-se assim justiça ao eminente escritor
com o título também de astronauta, profissão que exercia nas horas vagas que
não eram poucas, uma vez que o nosso extinto homenageado vivia sempre no ar e
boiando no vácuo. Justiça seja feita pelo menos na hora da morte quando o
respeito impera e mentira não se cria.
E
o discurso prosseguia ecoando e se imortalizando em qualquer estilo, grandiloqüente
ou simples mesmo, valia tudo; estava sempre dentro do contexto, a crítica se
abstinha de comentários prós ou contras porque não tinha graça e não dava lucro
crucificar ou bajular um morto. O falecido, geralmente, ganha uma rua, um
viaduto que cai como uma luva ou uma praça, na pior ou na melhor das hipóteses.
Afinal merece, não incomoda mais, não compete, não sombreia e muito menos vai
ter o gostinho de ser feliz em vida, o que já é pedir e abusar, façanha
alcançada só por Pelé, o Rei Incomparável.
É
muito fácil homenagear um corpo surdo, mudo, sem boca e olhos para sorrir e
chorar de alegria e sentir com ânima as emoções. Quantos titulares e reservas
da Academia seriam aqueles mestres em teses... alheias? Difícil responder,
todos sofriam de acefalia parcial cretina, sem inconsciente, deficiência que
destacava um falso consciente muito objetivo, sem amparo, nem mínima segurança de
fundamento, podendo desabar no primeiro mergulho na Lagoa da Meia Noite. Disfarçados, na embalagem hipócrita e arrogante,
dotados apenas de esqueleto e massa muscular, os falsos acadêmicos não
afundavam, boiavam aplaudidos por uma platéia cada vez mais ingênua e cega, acobertados
pelos bastidores e bajulados nos camarins, ciclicamente, por décadas, anos e
séculos. Assunto rico para outra tese.
Com a consciência quase em Paz, prosseguimos e saímos do Campo Santo.
IV CAP
- AS MORADAS DO SÍTIO DO ENCANTO
Estamos ainda
em 2007. Tessa passou uma semana em branco, pior do que se estivesse na Europa
durante o inverno; mas pasmem, os termômetros marcavam 37 graus, pleno verão de
um país sul-americano e tropical.
Em transe de
ressaca, reporta-se em slides ao presente histórico. Mora nos fundos de uma casa
dentro de um sítio com muitas pedras, rochas, montes, fauna e flora da mata
atlântica, um pequeno paraíso O Sítio do Encanto. Lembra-se da casinha colonial
do séc. XIX, com engenho de açúcar e farinha, lá na frente, arruinado, condenado,
atacado por cupins, belo e ainda em pé, usado como galpão para guardar
ferramentas; depois uma reforma de maga corajosa sem varinha de condão, transformou
tudo num nobre e simples ninho romântico para um famoso quero-quero, com
varandinha holística, toda redondinha, ladrilhada com pedrinhas S. Tomé e
pauzinhos de eucalipto, impiedosamente destruída com marretas, sufocada hoje em
algum buraco, sem força para soltar seus íons energéticos.
No lugar existe uma bela vivenda, não sei se
americana, austríaca ou francesa. A lareira continua em atividade relativa,
idealizada à gata borralheira e construída no improviso de pauzinho em
pauzinho, de pedrinha em pedrinha, de penas em penas. No inverno, Tessa
admira de longe as labaredas e sai congelada. Aos pingos, se derrete e se
conserva em salmoura de lágrimas.
Pouco a pouco
foi sendo proibida de entrar sem convite. Antes lá morava um rebento, o
primeiro de muitos. Hoje não reconhece mais a sua cria, mudou como a casa em
alternâncias díspares com predomínio da tristeza decadente sempre por baixo com
alardes químicos e coloridos de maquiagem borrada. Durante o sono, deve ter
havido trocas por reencarnação ou transplante para outro planeta, por quem ou
quando não se sabe.
A nova morada
de Tessa é um chalé desencantado de um sonho que de repente virou realidade
incompleta e se situa atrás da casa quase grande sem senzala nem engenho, com
sacadas e guarda-sol, habitada pelo senhor triste, pai do menino alegre.
A guerra fria
da ambiência se alimenta de bacanais camuflados, para agüentar o tranco da
rotina no corredor da vida em direção à morte e atingia Tessa em cheio devido a
laços sanguíneos e espirituais.
A família do
Sr. Castañeda queria ver a pseudo-opositora longe e por conta disto tinha
pesadelos macabros em sonhos felizes. Tessa estava ali com uma missão a cumprir
e era forte; mais tarde voltaremos a detalhes tiranos alusivos.
A fruta
precisa amadurecer para se abrir assim como a fachada dos fundos da casa
vizinha majestosa, elegante, simples e bela, colorida de romã em relevo, aberta
para o sol nascente. O colonial em adaptação suave ao vigente com harmonia de
mestre, completava o charme com a chaminé deixando escapar nas noites de
inverno a traição da mata sufocada no calor
do fogo e nos esfumaçados estalidos de agonia.
A frente mais arrogante e sóbria, representava
o poder lembrando torre de castelo, rainha estéril.
Muita coisa ficou ainda perambulando pelas regiões
oníricas da utopia por falta de dinheiro. Nunca houve neste mundo quem
artesanasse com mais afinco, criatividade e amor, o seu ninho, do que o Senhor
Castañeda, o pássaro famoso e original do sítio do Encanto.
Um deslumbrante
vale em musgo acinzentado entre montes e mar se abre à primeira piscada do dia
em sol nascente, vermelho e tímido.
A igrejinha
simbólica no topo do Morro do Suplício que consola os caminhantes para o penoso
acesso, é o orgulho da comunidade que adora penitência e a promessa eterna
jamais cumprida porque perde a graça.
O sino bimbalha
todos os domingos às 9h, mas o eco fica abafado na ressaca dos moradores que se
embebedam de preguiça, drogas e depressão, como bufões sem corte, perdidos nos
pesadelos do tempo que avança raivoso e silenciosamente soberano na velocidade
de uma bomba-relógio; a maioria descende de pescadores ou de operários de
origem açoriana.
O Vale da
Solidão, como Tessa o chama em surdina, repousa na ilha Flor de Lis, capital de
Suinan, ao sul do Brasil, descoberta há pouco tempo já pronta em miniatura, sem
dever nada às grandes metrópoles em progresso e tecnologia, aonde a minha
hospedeira deve ter nascido milênios atrás, cumprido o tempo de coma induzido e
retornado talvez de outro sistema sideral recentemente; nova fase de mudança é
iminente, mas ninguém se abala.
Esses dados da
realidade despida, arrasam qualquer assombro fantástico. Mesmo alertas,
preferimos aventuras e pesadelos, cobiçamos abismos e precipícios; do
insondável, sempre que desvendamos uma pista, o mundo se cobre de outro manto,
mas não desistimos de descobri-lo. Contraditoriamente, com os pés no chão, pesquisamos
física quântica e matéria médica; nosso forte mesmo se reúne em ciência,
teologia e política, naquele mix filosófico oriental à moda ocidente com frutos
do mar nascidos em cativeiro, que faz sentido com a globalização do séc. XXI em
transcurso na 1ª década, reservamos tudo e guardamos a chave.
Não fugimos a debates, principalmente
se houver homens machistas ou não, homos ou heteros, feministas ou lésbicas
metidos a cientistas políticos, jornalistas com caras de brocha, sedentos por
um viagra ou garanhão temporário, todos
boa gente, salvo as exceções.
Existencialistas
por natureza complexa e simultânea de irmãos siameses, não cultivamos
preconceitos e entre inteligentes, verdadeiros gênios em todos os segmentos e
nem sempre valorizados, nossos interesses e talentos não dependem de fama e dinheiro,
se movem à paixão e prazer, principalmente nas ciências e nas artes.
Juízo crítico
de valor partia da visão tessiana e sofria constantes modificações na corrida
contra o tempo e na disputa com divulgados e anônimos referenciais de infinitos
pontos de vista.
Como inconsciente
inexoravelmente subordinado e subordinante, considero-me suspeito de ser uma
figura única, aberta, atuando simultaneamente no palco, platéia e cenário.
Simples na
busca de descobertas por caminhos complicados e multidimensionais somos, quando
encarnamos todo o elenco de uma peça com perfeição de mestre. Chaplin daria uma
risadinha de gênio em busca de companhia no eterno?
Sem presunção
e entre dúvidas, reconhecemos ao longe uma réplica. Criamos, analisamos e
avaliamos para orientar nossas escolhas.
Já não há mais nada inédito, embora o busquemos com sofrimento e tenacidade.
O inaudito desce espontaneamente, mas
sempre ficamos com um argueiro e usamos muito colírio, virgem nem mais nas
surpresas de códigos vários recolhidos em viagens. Sempre
chegamos atrasados, embora se tenha a impressão de que a pérola surpreendente
pelo espanto saiu quentinha da nossa forma.
Na prática da vida,
não apreciamos elevados fáceis, estagiamos em patamares de pronaus, evitamos
trânsito prematuro por controle remoto. Os nossos milagres repousam em sonhos
realizáveis quando se materializam nos nossos desejos por escape inconsciente
Tornam-se acervo manobrável disponível na forma de vocabulário. Traumas nos seus
herméticos esconderijos! Acusa a mídia e tortura Tessa para desacreditá-la.
Sofremos juntos, terrivelmente sós. Logo estaremos libertos e iremos mansamente
como nuvens em êxtase nos assimilar às galáxias e chamar atenção em silêncio
para a esfera. E se houver desvio? E os ventos mudarem? Não há perigo porque os
nossos visionários são quase puros, videntes e únicos, tão íntimos, imunes num
só clarão, cúmplices da relva, do mar e dos ares.
Por instinto
temos consciência que o rastro de admiração e afronta é o que deixamos nas
marcas firmes de nossas pisadas na terra, mas não provocamos amor em ninguém. Ao incomodar,
temos certeza do ódio da maioria. O preço de descobrir uma alegria além e
apesar da morte não nos é dado por cortesia.
Não divulgamos
nosso sofrimento nem abrimos mão do inusitado. Pagamos o preço em pensamentos
alarmantes captados no espaço e devolvidos em meteoros benéficos de energia e
luz expansiva.
Não reclamamos
como gente para não correr risco de vida, linchados e destroçados até as
vísceras por feras humanas, desintegrando-nos prematuramente.
Em plena consciência
de representar a contradição personificada para a maioria, nos orgulhamos da
nossa condição especial desumana. Nos momentos de baixa, Tessa medita
conscientemente e deseja muito ser aceita.
Os opostos e a
dúvida são seus aliados porque fazem a evolução do saber um processo infinito a
desvendar inversamente o simples para assimilar o sopro transitório da vida tão
complexo. O espanto alheio repulsivo a diverte. Ri a noite toda; se dorme não
sabe, deve ser durante seus planos mirabolantes, quando pensa sair de órbita e
visitar outros planetas, sofre de insônia anônima que não faz mal a ninguém,
segundo um cacique famoso que não vamos divulgar. Compromisso e levante de
controvérsias, querelas imensas no fórum das pequenas causas é entediante e
desastroso principalmente em
família. Seu comportamento, às vezes, intriga os mais
racionais e eu me sinto responsável.
Nossa visão de
mundo é de perplexidade hipermétrope e impactante, esfacelada em focos
agrupados, desconvexos como minúsculos meteoros informais de um conjunto
disforme e colorido passando a negro azulado num pisca-pisca surpreendente, com
pontinhos luminosos e opacos em alternância. Será que é problema de mácula ou
descolamento de retina? Uma pergunta
inconsciente baila no ar de nossa atmosfera. Teremos mais medo do niilismo que
os seriais fortes por que coordenados, todos de cabeça feita? Seremos os mais
subordinados à fugacidade poderosa do tempo que na verdade é de todos os
mortais em fases de febre intermitente? A vida é uma mentira, lembrou-se Tessa
das últimas palavras de uma amiguinha que morreu de câncer. E não era nenhuma
Love Story e eu emudeci de escanteio e conscientemente envergonhado.
V CAP- O SURREALISMO DO NATAL
Às vésperas do
ano novo, a nossa vivente sentiu o drama de realmente estar sozinha. O Natal tinha
sido anestésico, um cochilo num piscar de olhos. Afinal uma madorna atraente, original
e inusitada não se tinha todos os dias, principalmente com dores de implante, perfume
forte de comida agridoce, caras de mártir. Será que esta palavra vem do planeta
Marte aonde os Kardecistas dizem ser a morada das trevas? Uma cara bem brega em
destaque ostentava a máscara do sofrimento. Ou da tortura? - Vai nessa? - e se
afogava no champanhe, na cerveja, na vodka e na pinga mesmo, preparando seu haraquiri
de criatura bomba que se preza para explodir mais tarde sem lugar marcado; outra,
sorrindo tragicamente como se a vida se interrompesse no exato momento do
ríctus cínico e escancarado, até a eternidade da cova ou do crematório pago à
prestação porque o inferno ou o céu não seriam bestas de aceitar aquele
espantalho nem à vista, todos iriam correr para o purgatório com excesso de
contingente devido à recente descoberta do petróleo muito divulgada, em
transação com o diabo. Pode respirar, leitor.
O cenário
natalino não era tradicional no sentido clássico. Várias colchas de retalhos,
tipo fuxico de filme mudo, cobriam o ambiente; nenhuma mesa comportava um único
ser vivo. Uma sustentava alguns manequins destroçados e frios, recolhidos de um
incêndio, mas limpos da fuligem (trabalho digno e exemplar do pessoal da
reciclagem), as munhecas desconsertadas, porém funcionais, seguravam sôfregas e
avidamente suas taças.
Como figurantes, no mínimo, quatro crianças
tristes, talvez uma só alegre que se mantinha contida para não afrontar ninguém,
percepção intuitiva dos inocentes espertos.
A primeira a
se retirar foi Tessa que se fez acompanhar pelos mais pirados do ambiente, formando
um comboio desengonçado e cambaleante, mas solícito. Todos queriam se livrar da
extravagante criatura, próximo objeto em discussão, assim que a barra estivesse
limpa.
Neste sentido,
nossa protagonista não podia reclamar, sempre era o assunto preferido, o nº. 1
de todas as pautas em qualquer reunião, já era versículo de uma famosa parábola
bíblica: se mais de uma pessoa do eleitorado se juntasse, ela estaria presente
como tema de primeira grandeza. Não importava o lugar; na praia, campo, supermercado,
shoppings, sacolões, nas feiras livres; no cabeleireiro, recinto de terapia
desocupacional, lotado de escravas desiludidas, a novela passava para segundo
plano, Tessa sempre na preferencial.
No cinema, teatro
e até nas peladas; congressos, clubes, restaurantes a quilo ou à la carte;
aonde havia algum espeto corrido bem passado ou mal todos estavam lá; moqueca
de peixe, frutos do mar com destaque para ostras e polvo nem se fala; tudo sempre
com muita bebida e brindes desmotivados; em casas de amigos infelizes ou
alcoólatras ninguém faltava; nos dermatologistas e nos spas com o lema otimista
do devagar e sempre soltando muito dinheiro - recintos preferidos das peruas e
artistas em decadência - nos boxes dos camelódromos aonde óculos escuros era a
palavra do momento, também trocavam uma palavrinha e vocês já imaginam contra
quem, enganando os aprendizes de paparazzis para não se comprometerem, entregando
o ouro pra bandida da vizinha ou pro primo sempre à cata de contrabando; na
sala do cirurgião plástico apinhado de velhas hirtas e esticadas como labirintos
em bastidores, se comunicavam pelo alfabeto surdo-mudo; na sala de espera do dentista barbeiro e
aterrador e até nos SOSs cardios, onde a espera era marcada por séculos e a
equipe médica era faminta por ponte de safena ou angioplastia com stent e tudo,
muito em moda que custava uma nota verde - um dos fatores, aliados à cesariana,
de muita falência de convênios desmentido
pela classe médica que os acusava de exploradores, sanguessugas e estelionatários -
o bloco enterrava Tessa entre os intervalos respiratórios; nas filas dos bancos
ou na Av. Beira-Mar, zona nobre, perfumada à la Mer de Dior, sempre parada, era uma benção falar
mal de Tessa, daquela personagem embaralhada em perspectivas ou sem; o tempo em fuga mansa baixava a pressão e
todos descarregavam a mente e o espírito e nem precisavam de tarja preta para
dormir.
As noites eram de anjos já confessados, penitenciados
e perdoados; amarravam-se às camas com medo de sair em crise de gays devotas
pelas janelas de asinhas podadas, a gravidade não era vigário.
Os demais
espectros já sonâmbulos retiravam-se da festa trôpegos e sem rumo, só sumiam do
mapa em definitivo, após uma ordem irrevogável de recolham-se em si, reforçada
sempre por um S.Pedro, que precisava fechar as portas.
E o Natal de
2007 se apagou e se petrificou no finalmente em Paz provisória.
VI CAP - FESTA DE
FIM DE ANO E INÍCIO DAS REGRESSÕES
O leitor está
lembrado da solidão de Tessa às vésperas do ano novo, pois é de lá que vamos
começar este capítulo.
O vestido e a
sandália brancos em cima de uma cama de perdidos e achados, tipo bazar da
pechincha de escola pública de periferia para angariar uns trocados pra APM,
após uma colheita chorada e miserável como de nordestino pelos caminhos da
sobrevivência no durante a seca permanente.
Manya,
uma amiguinha que chegara de surpresa no Sítio do Encanto, de helicóptero,
tinha convidado a nossa figura de desenho desanimado, para passar a entrada de
ano lá pela Lagoa da Meia Noite. Tessa ficou meio inclinada a aceitar, mas no
fundo preferia passar com o Senhor da casa bonita que tinha lareira e uma
criança alegre, talvez a levasse para ver a profusão de fogos em cascatas, segundo
a prima Leléia, ia ser o máximo na beira-mar norte e relembrar também a Ponte
da Saudade, antiga, sempre iluminada, parecida com a de São Francisco, na
Califórnia, que ela considerava um ícone de sua infância e juventude, travessia
em mar aberto quando passava a limpo seus borrões de um diário abstrato pleno
de vazantes.
Sua ponte se abria para a grande largada. E
voltando ao presente, o Senhor Fritz Bauer y Castañeda, seu famoso vizinho da
frente, convidou-a para festejar a passagem de ano em sua casa bem-assombrada,
mística, cheirando a incenso, polvo e camarão para não dizer à perereca por ser
vulgar e chulo; com um almoço ajantarado
às 15h para saborear um bacalhau à moda escabeche, feito por sua esposa, Frida
Schultz regado com muito vinho, cerveja e o champanhe de praxe para o brinde à
data tão memorável. Relutou, mas foi facilmente persuadida. Além da superstição
de que não se deve comemorar nada antecipadamente, Tessa tinha outros planos como
passar perto do mar, ver os fogos e fazer promessas.
O escabeche
estava ótimo, brindou a morte do ano ainda vivo praticando a eutanásia com remorso
e o nascimento do seguinte que se encontrava em trabalho de parto ou fico, com contrações
sucessivas. Voltou logo para casa, apelou para o consciente e percebeu que mais
uma vez tinha sido rejeitada para a meia noite. Afinal, não era mais nenhuma Cinderela
e não tinha nenhuma fada-madrinha e se fosse teria q sair antes da meia-noite.
Vestiu sua camisola velhinha e recostou-se na cama.
De onde se encontrava, fixou o olhar no seu vestido
e sandália brancos que jaziam ainda em cima daquele muquifo, já pertenciam ao
passado como virgem beata que morre de velha e vai vestida de branco. Manya não
lhe saía do pensamento, mas não se arrependia de nada. Resolveu dar uns
telefonemas. Desistiu.
De imediato, sentiu-se em transe a rodopiar em
estado regressivo. As cenas se descortinavam em índices e fatos entre
personagens, por ações simultâneas em velocidade extrema, difícil decodificar o
enredo sem coerência na linha do tempo; mas, obstinada, se concentrou e a
primeira cena ao vivo se abriu diacronicamente para o sincrônico, definindo o
tempo e o espaço.
O prólogo da peça
se anuncia na década de 30, séc.XX, em Flor de Lis, no Balneário das Conchas,
em Jó, bairro situado na Garganta dos Enforcados que pertencia à capital ligado
pela ponte. As personagens lhe pareciam íntimas.
No primeiro
plano, uma casa de alvenaria modesta, abrindo-se num quarto com uma cama de
casal, uma cômoda, um criado-mudo e um guarda roupa, todos de pinho.
Duas personagens se destacavam: uma senhora
jovem, Dona Themires, em trabalho de parto, desesperada de dor com contrações
sucessivas aos gritos lancinantes que assustavam até vampiro em noite de
trovoada e a parteira, Dona Maria Tenebrossalva dos Santos, gorda, de
meia-idade, com sua ferramenta escabrosa para tirar a criança a ferro, no vai
ou racha.
Para manter
seu campo de concentração, entulhou a boca da parturiente com uma trouxa de
pano.
No segundo
plano, entrevia-se uma cozinha grande com uma mesa rústica rodeada por cadeiras
de palha; perto da porta dos fundos, um fogão à lenha com chapa e chaleira
enorme de ferro liberando o vapor pelo bico mais um bule de esmalte grande meio
descascado, cheio de café quentinho. O fogo era mantido pelo Senhor Zé da
Lenha; contra as paredes, um guarda louça, paneleiro brilhando e um guarda-comida
com telinha. Acima do fogão, uma prateleira com ganchos grandes de ferro,
pendurando uma manta de carne-seca, outra de toucinho defumado, um rosário de
lingüiças secas, uma réstia de cebola e um cacho de bananas verdolengas; do
lado esquerdo da porta, uma vassoura de piaçava virada ao contrário, para dar
sorte e afugentar visitas indesejáveis e ainda uma réstia de alho espetada num
prego para espantar jararacas e mau-olhado.
Sobre a mesa,
um alguidar de barro com bananas maduras, laranjas e uma abóbora Menina já no
ponto, de gargalo bem curvo; ainda um mosqueteiro de vidro e um castiçal de
barro com uma vela branca apagada; perto do fogão, um cesto de taquaras cheio
de lenha.
Abaixo de uma
janela, um móvel muito antigo servindo de aparador para uma gamela à esquerda,
cheia de machuchos, alguns brotados e à direita para um vaso bojudo, tipo
aquário grande e alto, cheio de lírios brancos colhidos no banhado.
O Senhor Kaia Kanga Tibiriçá, estava agora
mais calmo, segurava ao colo sua filhinha mais velha de quase três anos, a Dy,
apelido carinhoso de Diabry, uma homenagem à data do nascimento, dia 21 de
abril, morte de Tiradentes, o grande herói. O Senhor Kaia tinha outra opinião. Tiradentes
era um mártir, tinha morrido em vão porque o Brasil não era independente.
Operário
naquele tempo era um escravo revoltado e ainda o é de certa forma. Mais tarde,
vamos voltar a esta personagem importante e muito carismática, no momento o
parto crucial se impõe.
Ele e Dona
Themires preferiam um menino para formar um casal. - Nasceu, nasceu, é uma
linda menina, gritou Dona Salva, como era chamada na comunidade, toda suada e
com os cabelos crespos eriçados.
O grupo da espera se encaminhou para a porta
do quarto: uma velhinha que devia estar rezando no banheiro; duas vizinhas
gordas e uma magra; o Zé da Lenha, agregado de várias provações; todos
liderados pelo Senhor Kaia que levava a Dy pela mão. –Será que a criança nasceu
morta?- perguntou a velhinha magérrima de cocó, Dona Doralice, mãe de Dona
Themires, a Vó Dodô, assim que entrou no quarto. -Ela está viva, um pouco
traumatizada, respondeu a parteira, enquanto desferia golpes no bumbum da
nenezinha com gana de boxeador, tinha que ganhar a luta para honrar o seu nome e
a sua fama. Os gritos da recém-nascida eclodiram na casa inteira e pela
vizinhança.
O quintal dos
Tibiriçás se encheu de curiosos. Todos queriam ver a criança difícil de nascer
que estava no momento, com a cabeça toda enfaixada devido aos hematomas, fruto
das constantes tentativas de trazê-la à liberdade por meios primitivos de
tortura e sofrimento, mas válidos para a época. De cada lado da cabecinha, logo
acima da testa, dois grandes calombos, dispostos em nível e na mesma proporção,
tendo os olhinhos como pontos de referência; por baixo da gaze uma bela
cabeleira que se descobria loura no pescocinho. - Dona Themires, coitada,
sofreu tanto e teve um monstrinho com dois galhos, antes Deus levasse... deve
ser filha daquela coisa. – falou em voz rouca a senhora magra, vizinha do lado
esquerdo, a Dona Praganil, lavadeira da vizinhança, alcunha Dona Praga, nos
cochichos de suas clientes, se vingava das mais ousadas ou ingênuas, queimando
as camisas brancas dos maridos. –
É o que dá ser
orgulhosa, não conversa com ninguém, pensa que vai ficar rica trabalhando
naquela máquina – retrucou uma das vizinhas gordas, Dona Antônia, vulgo Anta na
calada, mas ela sabia, segundo seu Zé da Lenha, ninguém falava porque a jibóia
triturava e engolia; aliás, seu Zé a chamava assim e não tinha medo porque
enfrentava até cascavéis e a caninana de sua mulher.
Dona Themires
se encontrava fraquinha, aliviada, quase sorridente, mas tinha também suas
dúvidas quanto ao estado de saúde da criança e confessou para Dona Salva sua
decepção pelo sexo repetido. A parteira ralhou. Afinal tinha que agradecer, sem
febre, fora de perigo e com sua filha viva; era uma questão de tempo, com
compressas de arnica ou de chá de malva, de meia em meia hora, a menina
voltaria ao normal. – E como vai chamá-la?- perguntou, após pesar a criança. - A
senhora que decide, pode dar o seu nome, opinou com sinceridade, Dona Themires.
– Tás louca mulher, eu li um romance lindo que a mocinha se chamava Tessa, que
tal?-- Combinado, vai se chamar Tessa, gostei, quanto pesou? – Quase 6 quilos,
mas é também um pouco de inchume, tu tens bastante leite, basta só o peito,
qualquer coisa me chama.
Dona Salva,
além de gorda era alta e corcunda daí seu apelido, o Canguru. Fingia não saber,
mas marcava as pessoas e na hora da urgência não atendia. Muitas mulheres
morriam de parto, já fora processada, suas leais clientes a defendiam em fila de
mãos dadas com os filhos salvos, alguns já adultos e pais de cabelos-brancos. O
nosso Canguru aceitava ser chamada de Cegonha. – Mãe, quem é aquela senhora que
está sorrindo pra mim? – A cegonha, filho, que te trouxe pelo bico.
Dona Salva não
cabia uma mão de pilão de tão estufada, uma galinha choca. Acabou de arrumar
sua grande mala pesada e se despediu no coletivo com um adeusinho.
Alguém à porta aflito a esperava. Entrou numa
fubica velha da Ford e partiu na primeira como fazia sempre, nunca mudou de
marcha, com aquele barulhão já conhecido de o Socorro-Pronto nas ruas de Jó. Não
olhava pelos retrovisores, todos a deixavam passar, quando batia não pagava
nada e nem discutia, seguia o seu destino, mesmo quando era a vítima, não tinha
tempo a perder.
Dona Salva,
realmente era uma figura humana e rara de se tirar o chapéu, embora burlesca. Viúva de um herói da guerra de 1914, sua
pensão de soldado raso era precária, no entanto nunca cobrou os partos em
dinheiro, ganhava muitos presentes como galinhas, porco, banha, verduras,
legumes e até lenha. Despeça-se, leitor, porque creio que ela apareça agora somente
em citações.
Tessa
acordou-se no mesmo lugar como se nada tivesse acontecido. Estava ainda muito
comovida, não se esquecera de nada, pegou uma folha de papel em branco e fez
algumas anotações, espreguiçando-se. Voltou à realidade.
Era dia de festa,
comemorava-se o 1° dia do ano novo, compareceu novamente à casa do Senhor
Castañeda para um almoço em conjunto com outros convivas. Reconheceu alguns
parentes enxertados que como sempre a ignoraram politicamente. Apenas um deles
lhe dispensava alguma atenção de sangue. Semelhante fisicamente ao anfitrião,
ambos mexiam com sentimentos e sensações antigas que Tessa já não sabia
explicar. É como se ela vivesse o presente no futuro. Quando meditava e se
desprendia da matéria, o passado se lhe descortinava em transe hipnótica. Ela
pressentia sem questionar, ainda não era hora do coma para novo reinício,
apenas mais uma das minhas películas que ameaçava se romper para o show do
próximo ato da grande peça a se divulgar gradativamente na montagem do
quebra-cabeça. Por controle remoto, eu me mantinha fora do ar.
Aquela heroína sabia muito bem a hora de
apertar o botão e dar início ao espetáculo. Eu era o marido que pensava mandar,
a outra metade em domínio simulado nas mãos da poderosa atriz que de volta à
festa se viu numa mesa comendo restos que um traste de gente lhe colocara no
prato junto a espinhas de peixe.
Ao longe ressoavam
muitas gargalhadas, uma era mais próxima, cáustica bofetada de nora. Todos sem
olhos evadiram-se de perfil.
Em desamparo, mais uma vez Tessa foge daquela
casa que tanto a atraía e amava. Nas artérias cansadas e rígidas, o mesmo
sangue de dois homens e de algumas crianças, principalmente do menino alegre
que começara a ficar triste.
Logo, mais uma
noite, quando ia lutar bravamente contra o sono a favor da insônia. À tona
lembranças do pergaminho de atrocidades que teimavam em se publicar através de
um simulacro. Alinhavados em fileira, streptococus ameaçavam febris a chegada da
deusa Erisipela, insidiosa e invasora.
Inexorável a
perda da primeira batalha da feira bélica de amostras. Lentamente os nomes se
publicavam para a guerra que prometia imparcialidade.
O passado se
impunha com índices preciosos em sequência a serem avaliados para planejar a
melhor estratégia.
VI CAP -
A SEGUNDA CASA DO PASSADO DE
TESSA
Naturalmente o
palco se abriu numa piscada sinistra de luz. O cenário simples merecia uma
descrição.
Uma estrada de terra chamada de principal, uma
casa de alvenaria com um varandãozinho e um pé de rosa Santa Teresinha na
janela, plantada dentro de um pequeno canteiro de violeta caipira a esconder flores e botões roxinhos se
expandindo em perfume doce de jasmim ao longo de todo o roda-pé.
A cerca caprichada de madeira maciça com
detalhes holísticos de um suave barroco separava a casa da rua e amparava o
jardinzinho informal.
A grama sem corte, pés de ciprestes entre o
verde - água e o musgo, pés de balsaminas, muitos pés de dálias se arrastando
sem encostos com poucas flores, figueirinhas japonesas, beijos de moça e onze-horas
em profusão, plantados assimetricamente e evoluindo livres, respeitavam apenas
um caminhozinho ladeado de conchas e pedrinhas roliças retiradas da praia que
partia do portãozinho e levava à entrada da porta principal, subindo-se quatro
escadinhas de cimento queimado em vermelho e atravessando-se o pequeno varandão.
Antes de bater à porta, se o visitante olhasse
para trás teria a imagem de um jardim meio triste e colorido sem vontade,
abandonado e teimoso no meio das ervas daninhas, florindo em borrões amarelinhos,
lilás, azuis e rosas, destacando-se a azedinha de belas folhinhas circulares e
tenras num convite quase irresistível à colheita para uma saladinha.
O quadro descrito era de Tessa que se
adentrava invisível e sem chave. Uma
vitória régia entreaberta ia se expandir comigo na platéia e dar continuidade à
regressão de cabeça para colocar a narrativa em pé.
A incógnita estaria prestes a se decifrar no
inferno em direção ao paraíso? Devia ter convidado Manya para ser testemunha.
Plenos de dúvidas, acionamos a visão
consciente e nos abrimos para o cenário interior.
Entramos numa sala retangular, assoalhada de
madeira em réguas estreitas de canela e peroba, na parede à esquerda e ao alto
uma foto oval em preto e branco, emoldurada por madeira escura e filetes
dourados próximos à imagem de um jovem senhor de pele clara, olhos melancólicos,
pingados de mel escuro em forma de amêndoa, vestido de paletó clássico e preto,
camisa branca e gravatinha borboleta; no alto da testa abaulada e espaçosa, um
triângulo perfeito dava início à cabeleira lisa, espessa e escura, penteada
para trás, que vestia a cabeça relativamente grande para o rosto oval de traços
harmoniosos e simétricos.
O semblante de
um belo homem triste magnetizava o ambiente, atraindo como ímã quem ousasse
enfrentá-lo; os olhares de ferro, duros e frios não se atreviam e se tentassem
não sustentavam por muito tempo o contraste daquela expressão pura e digna,
verdadeira e desarmada, mística e encantadora, quase ingênua de uma vida inteira
exemplar, difícil e cheia de preconceitos, dedicada ao trabalho pesado
enfrentando toda a sorte de humilhações e injustiças que conferia a sociedade
da época a todos os operários.
Nada mais,
nada menos que o Senhor Kaia Kanga Tibiriçá, ilustrando a ambiência com a sua
magnífica autoridade cativante, doce e quente, em desamparo e sem máscaras a
não ser a da coragem de ser ele mesmo naturalmente. Uma mesa oval quase grande,
de imbuia ladeada por seis cadeiras de espaldar alto centralizava-se soberana
no meio da sala; nos dois cantos perto da porta de entrada, duas cantoneiras
ostentavam orgulhosas dois magníficos pés de antúrio aveludado com raras
estrias salientes e brancas, destacando um verde musgo carregado e brilhante
das folhas grandes e ovais em forma de coração original.
No lado oposto à foto do Senhor Kaia, um
relógio grande de parede alemão com pêndulo emoldurado por uma escultura
perfeita de um bravo garanhão, exibindo no ar suas patas dianteiras, dava o
toque aristocrático à decoração simples e um tanto quanto austera; um aparador
abaixo da foto e do relógio com portas de espelho impecavelmente limpas,
devassava com brilho cristais importados em cores, dispostos informalmente
junto a bibelôs minúsculos, xícaras e pratinhos transparentes de porcelana
chinesa, delicadamente pintados à mão, com raminhos de rosinhas abertas e em
botões minúsculos, num magnífico conjunto de arte clássica.
Tessa
paralisada de boca entreaberta, deixando transparecer uma expressão de surpresa
e terror espontâneos, enveredou-se para a varanda, cômodo que hoje se chama copa
ou sala de almoço. Ali as refeições eram feitas aos domingos quando havia
visitas.
Uma mesa retangular
volteada por cadeiras desiguais e de braços nas cabeceiras e sem braços na
lateral externa; na oposta encostada à parede um banco rústico de madeira
maciça completava o conjunto, todo estofado de couro na cor pinhão; uma mesinha
pequena ao canto, sustentava um radio comprado de segunda mão devido à guerra;
na parede uma paisagem bucólica retirada de folhinha, emoldurada com bambu
destacava uma rua e casas primitivistas coloniais com árvores formando um
bosque.
As mesas e os
pequenos móveis eram cobertos por toalhinhas de crochê na cor palha, feitas por
dona Doralice, a sogra do Senhor Kaia, só eram trocadas por outras crivadas com
perfeição por dona Themires, quando se tornava necessário lavar as primeiras
num rodízio continuo e alternado.
Tessa, que
agora estava na cozinha, ia se lembrando e intuindo quando ouviu gritos de uma
criança como a pedir socorro.
É necessário que se esclareça que a casa em
visita não é mais a mesma da cena do nascimento de Tessa, no Balneário das
Conchas, embora o bairro fosse o mesmo; as personagens se reduziam aos fatos e
condições do momento, após dois anos e meio. Assim, o espaço da cozinha era
maior, a mesa da pia era de mármore branco com arremate de latão que para se
manter novo e brilhante tinha que ser esfregado com areia fina recolhida nos
cômoros da Lagoa da Meia Noite e sabão de cinza feito em casa.
Dona Doralice
se encontrava crochetando sentada numa cadeira de balanço em vime envernizado
já bem gasto, fosco e cheio de falhas; a seus pés, uma caixa de papelão dançava
à medida que a linha era puxada do novelo de dentro e fazia um certo barulho
enfadonho e repetido. O quarto ao lado da cozinha era da vó Dodô e da agregada
Justina, lá se encontrava uma almofada de renda com o trabalho armado cheio de
alfinetes seguidos de bilros pendurados por fios de linha que eram trançados
com mestria pela artesã para formar o desenho à medida que se ia trocando os
alfinetes.
Difícil descrever, só ao vivo se tinha noção
daquela artimanha do arco da velha a se transformar milagrosamente num trabalho
manual belíssimo.
Os gritos da criança mais fortes agora estavam
insuportáveis. Tessa abriu a porta da cozinha para a varanda e testemunhou uma
cena cruel e comovente.
Uma menina
loira aparentando mais de dois anos, apanhava palmatórias nas mãozinhas gordinhas,
finas como seda e rechonchudas.
Um raio partiu de seu pensamento magnético num
relâmpago divino de bruxa ou de fada, iluminou o espaço inteiro desde a sala.
Dona Themires saiu do transe demoníaco e parou fulminada. De repente uma estátua
de pedra oca e gelada soltava das narinas um pouco de suas frustrações e
deixava em paz um dos objetos de seu ódio covarde.
Aquela
criancinha indefesa que mais parecia um anjo precisava ser castigada muitas e
muitas vezes, não merecia tanta vida e beleza impunes, tanta inocência, tudo
gratuitamente. Dona Themires não se esquecera e não perdoara nunca as dores do
parto e precisava dividi-las com a causa primeira do seu calvário. O motivo
vivo de suas dores lancinantes estava sempre perto, subordinado, frágil e
submisso em forma de gente, afrontando-a, provocando-lhe a ira e o seu sadismo
mórbido, com sua inocência pura, bela e saudável.
Precisava
pagar e sofrer como ela para que pelo menos as chagas em aberto se fechassem em
cicatrizes e a vingança fosse aplacada. Era o mínimo.
Vó Dodô
levantou-se da cadeira gemendo reprimendas entre dentes e foi banhar as
mãozinhas da nenê cheias de bolhas,algumas estouradas e sangrando, com água de
sal e neste exato momento Tessa se reconheceu naquela criança e chorou em autosolidariedade
copiosamente.
Da. Themires
discutia com a mãe. – É por isto que ela já não obedece mais, está sem –
vergonha, depois não me venha reclamar que não educo; olhe sua almofada, os
bilros caídos no chão. A Dy não mente, ela viu a menina dos seus olhos
arrebentando tudo.
Em seguida,
dirigindo-se à criancinha banhada em lágrimas, ainda soluçando, vociferou: - E
pare de chorar, senão vai apanhar mais e de vara. A criança agarrou-se às
pernas da mãe como a pedir clemência humildemente, sem nem entender do que se
passava.
Dona Dodô segurou Tessinha nos braços magros e
foi para o quintal, sentando-se num banco tosco embaixo da parreira de uvas. A
nossa vidente acordou enxugando as lágrimas enquanto eu me recolhia solenemente
fechando as cortinas.
VII CAP – O ACORDAR DE TESSA -
Ainda esfregando os olhos, a criatura não sabia
se tinha sonhado ou se desligara o seu mundo para relaxar e dormir. Olhou o
relógio, marcava duas horas da tarde. Lembrou-se da festa do 1º. Dia do Ano.
Fantasticamente estivera em transe dois meses? O calendário marcava 1º de março.
Olhou-se ao espelho, estava com o mesmo penteado embora um pouco desfeito, a
mesma camisola velha quase se apagava entre o branco e um verde desmaiado.
Manya não atendia ao telefone. Teria estado em outro planeta?
Foi até a geladeira e encontrou tudo
fresquinho como deixara. O calendário devia estar errado.
O jardim e o pomar
denunciavam uma chegada de outono meio prematura.
Os pés de
araçás estavam carregados, a amoreira arrastava-se pelo chão devido ao peso das
frutinhas ainda verdes com promessa de safra pródiga e assim as jabuticabeiras
e os abacateiros já parindo e ainda em flor.
Tornados e
ciclones no rastro de migalhas de telhas pelo chão, bloqueando a passagem com
galhos, folhas velhas de coqueiros e de ipês; a grama competindo com as
tiriricas tinha crescido. Folhas migratórias e desconhecidas prometiam muito
trabalho pela frente.
O calendário
estava certo, apenas eu me fechara antes de Tessa acordar. O choque podia ter
sido fatal já que o espírito se afastara por um longo tempo e como seu protetor
subordinado àquela vida, não podia confiar num perispírito sem credenciais,
abominava toda e qualquer mídia. Fazia-se mister estudar mais, viver e viajar
muito e mesmo assim ainda arriscar como tudo na vida a começar pela própria.
Inadiável
desembaraçar Tessa do invólucro de mosca capturada em teia estranha. Sempre que
eu me fechava, minha irmã siamesa ficava perdida, precisava se conscientizar de
sua liberdade, mas era muito difícil começar do zero se eu, o seu inconsciente
não se esgotava da carga inútil e inválida. Ninguém vivia muito tempo em crises
de transe sem respirar a realidade presente, conviver, conhecer e reconhecer os
entes da última aterrissagem, desvendar e desvendar-se para delegar apenas ao
inconsciente, acervos de programas úteis, a ajuda tinha que ser mútua.
Meu excesso de contingente merecia dispensa ou
férias temporárias. Safra nova que pode ser resolvida em doações e desabafos
não pode se acomodar por cima das que se deram por vencidas e esperam
impacientes pela interferência de técnicas nanoterápicas como se faz com
coronárias entupidas pelo cateterismo operante.
O cérebro não
tinha coração. O coração do cérebro estaria do lado das emoções não sinistras? Ativar
o inconsciente pela concentração autohipnótica era uma mágica que precisava de
pesados truques psicológicos ainda que aparentemente sobrenaturais. Mais fácil
cortar pedras e carregá-las ou intervir em mil coronárias pela angioplastia.
A nossa sorte
é que eu era um inconsciente conscientizado o que nos remetia à hipótese de
irmãos siameses, por vezes parecendo independentes.
Realmente ela
não viveria sem esta dupla. E o que seríamos sem ela? Isto nos estaria
encaminhando pra uma terceira pessoa acéfala e ambulante. Não estamos aventando
nenhum absurdo, em todos os nossos estágios encontramos com muitos seres sem
cabeça aparentemente humanos e já nos referimos a alguns exemplares no decorrer
desta narração que se passassem por uma ressonância magnética não ficariam a
dever nada aos demais da sua espécie em massa cefálica.
Nenhum exame
ainda não detectara o vazio cognitivo, o emocional nem o grau de inteligência;
logo, nada era tão simples nem tão complicado para que nos fizesse recuar.
Esta dúvida
atroz que acomete a todos de separar ou não uma santíssima e única trindade,
talvez fosse a causa de se perder tão facilmente a cabeça na trilogia corpo,
consciente e inconsciente.
Na separação a
cabeça tornava-se oca. Uma maneca manipulável entrava em cena e desta não
participava a nossa partnere. Três por um e um por todos era o lema. Enquanto
durasse este triângulo, uma cabeça especial e lúcida estaria garantida.
Necessário se tornava também o toque de um só coração.
VIII – CAP A VOLTA À
REALIDADE
Tessa
levantou-se da cama, tomou um banho, vestiu-se de branco, amarrou os cabelos
quase loiros com uma tira preta de veludo molhado, colocou um chapéu de palha e
caiu de cabeça na estância.
Apesar dos pernilongos, marimbondos, formigas,
lacraias, centopéias, aranhas, lesmas, prováveis escorpiões e muitos filhotes
de jararacas e corais em tocas e biombos suspeitos, com caras de perigo e SOS;
as borboletas, os beija-flores, a passarinhada miúda e grande, rolinhas fazendo
ninho, as saracuras passeando sem cerimônia catando bichinhos e sementes, os
mamoeiros carregados e as gamas de verdes brilhantes sem contraste com o azul
marítimo do céu lhe dissipavam o medo, as alergias e a tristeza, permanecia
apenas a saudade persistente e agora suave de outras vidas, outros ambientes,
outras pessoas, outros desejos, outros amores.
Não se bastava, sabia disto e continuava
fingindo, podando a roseira antes do tempo que não era mais o de Santa Teresinha.
Seu vício
quase doentio concentrava-se nos passados remotos e recentes até desmaiar, mas
hoje não estava em pauta nenhuma regressão e sim o início de um passo
progressivo do aqui e do agora ainda que doloroso como um parto para traçar um
futuro com muitas surpresas e descobertas no caminho.
O jardim e o pomar estavam romanticamente
desordenados e belos, livres do excesso, penteados em desalinho, deixando à
mostra timidamente as cores e os reflexos dourados do Sol. Estava louca para
rumar para outro planeta. Devia existir o da felicidade aqui mesmo. Não se
atreve a tentar tamanha ousadia. Por onde andaria Manya?
Mudou de roupa e se viu numa escola
identificada com a diretora que usava um vestido preto coberto por uma kafta
azul celeste deixando à vista só uma golinha preta de freira como pretos eram
os sapatos e o fundo das meias com matizes de pintinhas azuladas, cabelos
bastos e louros presos por uma fivela prateada com pedrinhas azuis.
Tessa se olhou
num espelho imenso, estava vestida assim. Seria mais uma crise de
esquizofrenia? E quem disse que era esquizofrênica? Não, era ela mesma e estava
linda apesar da breve estatura e do excesso de peso. O rosto esbelto coberto
por uma pele alvíssima com textura de seda era de uma beleza harmoniosa e
intrigante que se acentuava no olhar melancólico forte e magnético, pronto e em
posição de sentido para atrair naturalmente. Nas maçãs do rosto meio encovadas
sobressaíam dois olhos muito escuros e amendoados, realçados por sobrancelhas
levemente curvadas, finas e quase invisíveis numa testa arredondada e grande;
nariz perfeito para o conjunto e dentes covardemente impecáveis à mostra numa
gostosa gargalhada.
Tessa infiltrou-se
imediatamente em silêncio, não houve um gesto de reação e ainda fruiu por
segundos daquela aura num de seus acordes expansivos de alegria que vai se
extinguindo lentamente como um sino fúnebre e se cala num mergulho implosivo.
Dona Eli
Áurea, olhou o relógio, chamou o motorista e foi para casa sem saber que estava
levando consigo uma outra identidade. Ou seu guia? Será que Tessa pensava ter
assumido seu legítimo lugar na vida? Saído daquele ostracismo de repouso
latente para a realidade ?
Tinha estado
Tessa todo aquele tempo numa casa de repouso? Seriam almas gêmeas Tessa e a
Sra. Eli Áurea? E na possibilidade de serem, ocupariam o mesmo corpo? Seria um
caso psicótico louco por certo? Ou errado? Tentaremos seguir com o texto aberto
para o ponto de vista do leitor naturalmente. Um significado nos escapa. Não
sabemos por que ainda não descobrimos. Tessa com sua mania de ficar invisível
estava sonhando ser aquela personagem em mais uma de suas andanças?
Tudo oscila em significações. Eu
e minha parceira sempre tivemos em conjunto uma alma barroca. Tessa quando saía
sempre vinha carregada das lojas Milium, às vezes descobria o que fora buscar
só em casa, sempre pagava um alto preço pela difícil decisão e ainda assim
contagiada de dúvidas mil.
Eli Áurea
largou os livros e a bolsa em cima do sofá. Morava sozinha num sobrado
geminado. Subiu as escadas quase morta de cansada, já fizera um poema hilário
sobre suas doenças reumáticas e inflamatórias, precisava emagrecer. Só relaxou
quando o motorista foi embora. Ansiava ficar sozinha e hoje mais do que nunca. Lembrou-se
da comidinha que fizera de véspera, estava sem fome! Tirou a roupa e tomou uma
chuveirada com chinelo de dedo para não escorregar.
Após o banho,
enxugou-se demoradamente, não conseguia cantarolar como sempre, mas estava
menos insegura. Vestiu uma camisola bem velha e deixou a de cetim novinha em
cima da cama, tirou logo rápido e subiu pelada na balança, não emagrecera nem
uma grama apesar do severo regime e vestiu-se imediatamente, sentia um
bem-estar esquisito, fez alongamento, precisava continuar o seu romance.
Não conseguia digitar quando criava. Ficava
nervosa se lhe faltassem papel e canetas, tinha sempre um arsenal em cima da
pequena cômoda. Desceu as escadas, abriu a geladeira, encheu uma bacia de inox
com laranjas e pegou uma faquinha. Passou a tranca no quarto. Fechou as
venezianas e colocou um peignoir, não via TV quando estava em crise de criação
até altas horas. Veranico de maio em março ou frio de inverno? Sentia calor e
frio ao mesmo tempo, já tinha passado da menopausa.
Desistiu de escrever e deitou-se para pensar.
Quando olhou para a bacia na mesa de cabeceira, levou um susto, alguém tinha
descascado a metade das laranjas. E onde estavam as cascas? Procurou no
cestinho de vime, nada. A faquinha estava seca. Lembrou-se do marido que
falecera de repente, mas vinha morrendo há muito tempo de Alzheimer. Descascava
laranja sem sujar a faca no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Seria a
alma penada do falecido ou estaria também com Alzheimer?
Precisava comer alguma coisa, pegou a bacia,
fez chupeta de uma laranja e sorveu em poucos segundos e mais uma e outra
sucessivamente, só parou quando percebeu que tinha que descascar as restantes.
Jamais tinha chupado laranjas tão deliciosas.
Ligou a TV,
estava no jornal nacional, só violência, colocou no automático. Encostou-se aos
travesseiros, não conseguia dormir. O barulho da rua era infernal, faziam racha
de moto, tiros ao longe e cada vez mais perto. Levantou-se, desceu até a cozinha,
tomou os remédios de sempre e um calmante de maracujá.
Após uma hora sem dormir acreditava ter encontrado
na mesa de cabeceira da direita um copo e um comprimido, devia ter trazido para
cima, tomou e adormeceu profundamente. Acordou-se muito cedo e continuou na
cama, ia telefonar mais tarde e faltar à escola.
Eli, como era
chamada na intimidade, morava em Procissão, cidade grande, capital de Senhor
Morto, estado situado entre o sudeste e o centro oeste do Brasil, em bairro de
subúrbio, no Campo Santo, topônimo inventado pelo povo em homenagem a um
cemitério muito grande do mesmo nome, mas de santo o bairro não tinha nada.
Sua rua era agradável e sem saída, servia de
balão para os carros fazerem a volta, o que aumentava o barulho e assimilava um
pouco a algazarra infernal dos vira-latas.
A casa era impecável e muito bem decorada por
ela mesma. Desde q ficara viúva n se comunicava com nenhum membro da família
que residia em Senhor
Morto e Flor de Lis. Às vezes viajava durante as férias ou
licenças médicas para Suinan e pousava no Sítio do Encanto. Senhor Morto,
apesar do nome, centralizava recursos para tudo, principalmente no setor das
artes, do conhecimento e da cultura em geral, uma cidade de primeiro mundo,
embora pertencesse à América Latina, portanto, um senhor muito vivo que sabia
demais, não só do país como do mundo. A par das vantagens, a violência, o
crime, o tráfico de drogas, a poluição e o trânsito infernal, pesavam na
balança em equilíbrio contínuo entre o paraíso e o inferno como quase todas as
cidades grandes não planejadas, com remanejamento migratório constante de
outras assoladas pela seca, desemprego e miséria.
Naquele
momento, Tessa abdicou de seu sonhado nome, de seu paraíso de férias e repouso,
da criança alegre que se tornara triste, do Senhor Castañeda com suas festas
estranhas e comoventes, cheias de ciladas, encarnou em Eli Áurea, assumindo sua
vida e seu trabalho, não sabia, porém, se ia abdicar de suas regressões já que
eram involuntárias, impositivas e contundentes.
O Sítio do Encanto ia pesar-lhe por muito
tempo, tinha certeza que voltaria um dia como Manya ao rol de suas amizades.
Qual das personagens era a oficial? A real desta reencarnação? Tessa, Eli Áurea
ou Manya? Havia muitas ainda anônimas. Por que um nome? Sentia-se como um
poema, plena de significações sem nenhum significado.
Sua história
na Educação, naquela cidade foi pesada e triste, ia terminá-la primeiro para
depois dar continuação à grande história. Logo que fosse possível retornaria de
onde parou para reconstituir seu passado e encontrar alguma lógica em viver e
conviver com pessoas tão estranhas. Isto seria o mínimo já que não conseguia
desvendar o animal gente, o porquê de sua existência aqui na terra, a violência
da morte que chega quando quer e não respeita nenhum ser vivo nem os mais
inteligentes.
Após um dia de
repouso e meditação, Eli enfrentou a nova etapa. Levantou-se cedo e demorou a
se arrumar, do que gostava não servia, a blusa não combinava com a saia, calçar
meias era um suplício, pilhas de sapatos que machucavam, até que conseguiu
pentear e prender por último os cabelos, engoliu um remédio e entrou no carro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui suas impressões: